“MS Slavic 7″ honra o passado e projeta-o no presente
A organização do Doclisboa‘19 convidou o crítico de cinema e programador canadiano Adam Cook a selecionar uma série de filmes oriundos do seu país. A sua escolha recaiu sobre a obra da emergente e prolífica realizadora Sofia Bohdanowicz, que, desde 2014, entre curtas, médias e longas metragens, já realizou 11 filmes, todos exibidos nesta edição do festival.
O percurso da cineasta iniciou com uma trilogia de curtas sobre a sua avó materna. “A Prayer” retrata a vivência isolada da sua parente, enquanto realiza tarefas domésticas variadas. “An Evening” passa pelos mesmos lugares da casa, mas após a morte da avó, uma abordagem metafísica de procura da sua presença nos bens materiais que deixara para trás. “Another Prayer” revisita a primeira curta de uma forma simultaneamente macabra e transcendental. Bohdanowicz projeta as imagens da falecida avó (utilizadas em “A Prayer”), fazendo-as corresponder nos mesmos espaços da casa, agora vazios.
A primeira longa metragem de Sofia Bohdanowicz, “Never Eat Alone”, marca uma subversão no caminho até então traçado pelo seu cinema, aproximando-o da ficção. Relembrando Pedro Costa (com abordagens absolutamente distintas, note-se), a cineasta usa atores e não atores em simultâneo, reencenando situações que, efetivamente, aconteceram na sua vida, com maior ou menor grau de veracidade. Para tal, coloca em cena a sua avó paterna, representando-se a si mesma e uma atriz (Deragh Campbell), servindo esta como avatar da realizadora. O arco narrativo do filme gira em torno da redescoberta de um amor passado da sua avó. Embora exista uma aproximação à ficção associada a uma narrativa convencional, volta a evidenciar-se uma preocupação com o retrato da vida doméstica solitária do idoso e uma meditação em torno da memória, do legado e da finitude da vida.
A simbiose com Deragh Campbell volta a surgir na curta “Veslemøy’s Song” e atinge o seu ápice no seu mais recente trabalho, “MS Slavic 7”, onde a atriz, para além de representar Sofia Bohdanowicz na tela, partilha o crédito da realização do filme. Continuando a exploração da vida dos seus antepassados, acompanhamos a protagonista nos arquivos da Universidade de Harvard, local onde está guardada correspondência entre a sua bisavó Zofia Bohdanowiczowa e Józef Wittlin, ambos poetas polacos, exilados para Toronto e Nova Iorque, respetivamente, por ocasião da 2.ª Guerra Mundial.
Se os seus primeiros filmes denotavam uma intenção de retratar detalhadamente as lides domésticas – atividade pouco explorada cinematograficamente e que lhe valeram comparações com Chantal Akerman – “MS Slavic 7” foca-se agora na exploração e manuseamento destes arquivos históricos e familiares. Seguimos, minuciosamente, a forma com que Deragh Campbell folheia, dobra e desdobra, todas as cartas e demais documentos. A totalidade da obra de Bohdanowicz, e este filme em particular, transmitem uma aura metafísica a estes materiais oriundos do passado, expressa na fisicalidade do toque ou da projeção, remanescências de uma presença física que deixou de o ser, seja por fatalidade ou pelo efeito da passagem do tempo.
Estas reflexões materializam-se no filme na forma de (falsos) monólogos que a personagem principal declama num bar, na companhia de uma cerveja. A atuação frágil e contida de Deragh Campbell contribui para a aparência documental de “MS Slavic 7”, reforçando a sua posição na fronteira com a ficção. Resta-nos aguardar pelos próximos frutos desta profícua colaboração, e de que forma Sofia Bohdanowicz continuará a confrontar o seu passado através da linguagem cinematográfica.