Mudam-se os tempos, permanecem as tradições
Não tenhamos dúvidas de que somos pequenas criaturas. Miseráveis, vis, completamente desprezíveis. Sucumbimos à nossa sombra, constituímos a maior ameaça ao nosso próprio ego e respiramos pelo simples facto de a possibilidade de morrermos abafados nos amedrontar. Somos filhos do medo, irmãos do egoísmo e progenitores de uma (in)cómoda e (in)confortável maneira de ser. Balbuciamos quando a tensão acresce e a pressão nos prende. A atividade discursiva que defende a evolução dos tempos está tão rompida quanto as calças de uma criança aquando dos inúmeros deslizes para o chão. E a vida é isso mesmo, um deslize vertiginoso para o nada.
Deus, Pátria e Família. O epíteto é conhecido por qualquer pessoa, da analfabeta à doutorada. Portugal ditatorial e o Portugal de 2020 fundem-se frequentemente e só os mais atentos estão aptos à percetibilidade desse acontecimento. Atenção, não pus nem é meu intuito colocar em causa a democracia, porque ela existe (os mais enfurecidos que controlem os apupos), não vá aparecer aí algum politólogo que me contradiga, André Ventura ou até mesmo Greta Thunberg. Como o presente manifesto não ataca o clima, exclui-se, desde já, uma possibilidade…
O alvo é o cidadão comum, a seta, as tradições/hábitos/costumes “de bem” e o jogador os respetivos pais. Na prática do Cristianismo, reside um exemplo que ilustra na perfeição o momento: concebe-se uma cria, edifica-se o batismo da mesma e, após anos de doutrina, os pais observam o desvio da rota que traçaram com todo o amor. O exercício foi realizado, por mim, vezes sem conta, mas é sempre infrutífera qualquer conclusão, ao contrário do dom que os pais possuem para adivinhar a vontade da criança e de lhe traçar o caminho que lhes foi imposto. O “se eu fui batizado, o meu filho também será” desponta uma vingança súbita e uma necessidade grotesca de corresponder à expetativa que a sociedade atira para a teia da afirmação e aos parâmetros a seguir à risca, regidos pela família, de modo que degenerar não conste na lista das possíveis ameaças. O choro, aquando do despejo da água benta pela cabeça do imberbe, pressente a descrença futura. Portanto, na altura devida, sou adepto do “fui batizado, mas quem me garante que o meu filho/a queira ser?”!
A educação também se ressente, está claro. Os métodos que vigoravam há 50/60 anos encontram-se presentes no sistema educacional de então, possuindo a mesma base de derrocada: o comum mortal, completamente órfão da Justiça no Ensino, continua sem perceber onde habita a igualdade de oportunidades pelas mais variadas razões; prescrevem-se disciplinas, na transição para o ensino secundário, cresce a inquietação na adolescência que circunscreve todo e qualquer jovem e agitam-se as águas que escondem uma biodiversidade de questões que o começam a preocupar (por exemplo, se alguém quiser ser biólogo, por que razão precisa de ser ensinado com matemática?); permanece a total e estapafúrdia dependência de um exame, prova efetuada numa sala subjugada ao silêncio ansioso dos alunos, que equipara duas horas a um percurso escolar com duração longinquamente superior (três anos), anulando, na maior parte das vezes, tudo o que até aí tinha sido desenvolvido; dos professores para os alunos, a transmissão de informação chega da mesma forma: aposta-se no tradicional, o professor do alto de um estrado, com voz altiva, impessoal e sem qualquer estratégia inovadora que capte a atenção de quem precisa de aprender. O cardápio do fracasso educativo está quase completo, falta o recheio das réguadas e dos açoites…
Contudo, há uma tradição que parece ser imutável, mais do que as aqui referi: a tradição política. Aquela que, apesar do decurso normal das coisas, não verga sob protestos e contestações. Aquela preocupada em robotizar ideologias e pensamentos “fora da caixa”, passe o tempo que passar. Aquela que promete mundos e fundos e que cumpre a eterno prazo. Aquela que suplica a confiança dos eleitores e estes, imbuídos do espírito da tradição, restabelecem o seu índice emocional e o seu umbigo. Aquela que “come tudo e não deixa nada”, que é vampira no verdadeiro acesso da palavra. Aquela que se abstém relativamente ao ataque à sede da Porta dos Fundos (PSD, CDS e CHEGA), que condenou e compactuou com a censura proveniente da igreja relativamente ao sketch da Última Ceia, da autoria de Herman José, e que vetou e afastou “o Evangelho Segundo Jesus Cristo” de um prémio literário.
Escrever ao som de Talking Heads resulta nesta longa missiva. “Road To Nowhere” (Little Creatures, 1985) ensina-nos a caminhar para o vazio, para o nada. E nós lá vamos! Alegres, tristes, mas sempre formatados!
Não temam, o que importa é a tradição!