Música generosa
Nos últimos tempos, entre outras cogitações, tenho pensado muito sobre o que é a música generosa.
Não estou a falar da generosidade na música. Nas acções solidárias entre colegas de palco, que ocorrem durante as actuações por exemplo. Refiro-me a um tipo diferente de entendimento e apreciação. A algo ligado à estética, ao estilo, à essência de uma melodia que consegue abrir inesperadamente o nosso horizonte e encher o nosso o coração com esperança, optimismo e coragem. Uma melodia como o Hino da Alegria do IV andamento da NonaSinfonia de Beethoven.
[Nota: escolhi propositadamente esta interpretação da West-Eastern Divan Orchestra, uma orquestra dirigida por Daniel Barenboim, porque reúne músicos de países do médio-oriente: Egipto, Irão, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina, Síria e alguns espanhóis – a orquestra está sediada em Sevilha.]
Não é de admirar que o nosso querido Ludwig tivesse inventado uma potência musical como o Hino da Alegria. O compositor alemão ultrapassou inúmeros infortúnios e sofrimentos. Foi vítima de maus tratos por parte do pai, órfão de mãe muito cedo, pouco depois tornou-se guardião dos seus irmãos, ficou surdo ainda jovem, padeceu de desconfortos físicos terríveis (como cólicas constantes) e envenenou-se inadvertidamente de cada vez que bebeu vinho em copos de chumbo para, segundo ele, acalmar as dores estomacais. Perante semelhantes privações, reagir e resistir foi a única alternativa.
A NonaSinfonia não é o único expoente máximo do repertório autoral de Beethoven. O Alegretto da Sétima Sinfonia, o I andamento da Quinta Sinfonia, a Sonata ao Luar, os quartetos de cordas, entre muitas outras músicas, são peças que integram a banda sonora da humanidade. A obra de Beethoven é um reflexo da sua personalidade desassossegada, da sua fogosa inquietação, da sua rebeldia. Este tentou combater um mundo insuficiente, cruel e malicioso, recusando-o através da beleza e da virtude.
“Quero provar que todo aquele que age de forma correcta e nobre consegue, graças a isso mesmo, suportar a infelicidade.” (ao município de Viena, 1 de Fevereiro de 1819)
“Fazer todo o bem que seja possível / Amar a liberdade acima de tudo, / E jamais renegar a verdade, / mesmo que seja por um trono.” (Folha de álbum, 1792)
“Não reconheço nenhum outro sinal de superioridade além da bondade”
Os mais cépticos e pragmáticos podem acusar estas citações de românticas ou excessivamente dramáticas. No contexto actual, a honestidade, a gentileza, a generosidade, são cada vez menos relevantes para as decisões que desenham o quotidiano. A pobreza patente nas discussões polarizadas, pouco esclarecedoras e esclarecidas que ocupam o espaço de debate é um sintoma da ausência de valores como a nobreza, a liberdade, a verdade, a bondade e a felicidade, na engrenagem partidária. O cinismo da oportunidade, a urgência de ser protagonista, a ausência de qualidade intelectual no discurso (seja político, seja meramente opinativo), a ambição de ser famoso, a desvalorização da retórica, a interpretação falsa da história (passada e presente), são um reflexo de um status quo gerido através de múltiplas teias de relações e influências que, inevitavelmente, conduzem a sociedade para uma realidade injusta, aborrecida e tirana.
Uma consequência deste cenário evidencia-se na facilidade com que certos vilões sociopatas têm alcançado lugares relevantes na política mundial.
A música e a música generosa podem ter um papel determinante na transformação deste contexto cinzento. A sua natureza feliz e libertadora surpreende os ouvidos, instiga sentimentos imprevisíveis e impele movimentos descontrolados. De repente somos tomados por uma energia poderosa, mas inexplicável, e ficamos mais empáticos, conciliadores e tolerantes.
Temos que reconhecer que Ludwig van Beethoven cumpriu os seus ideais e que, entre as tentativas e erros característicos de um percurso impressionante, mas turbulento, nos deixou um hino, uma melodia, uma música assaz generosa.
Não vou analisar nesta crónica os elementos musicais que definem o fulgor desta magnífica melodia. Prefiro divulgar outras músicas que, aos meus ouvidos e, espero, aos vossos também, transmitem o mesmo tipo de alento e jovialidade patentes no hino de Beethoven. Chamo apenas a vossa atenção para a genial simplicidade da melodia em causa – uma simplicidade que favorece o comum ouvinte a facilmente aprender e replicar este hino.
Vamos então a outros exemplos de música generosa que identifiquei.
Quando estava a compor para o projecto Sibila Bilingue (estreado em Julho do ano passado, como referi na última crónica), ouvi inúmeras músicas clássicas e populares da Índia. A comunidade indo-bengala-paquistanesa foi uma das 5 comunidades emigrantes com quem dialogámos ao longo da nossa pesquisa para a criação artística proposta. Uma das entrevistadas sugeriu o tema Yeh Jo Des Hai Tera de AR Rahman. Esta canção faz parte da banda sonora do filme Swades de Ashutosh Gowarikercom Shah Rukh Khan (King Khan). Recomendo vivamente que vejam este filme. A canção transformou-se num símbolo do país. Devido à sua popularidade, foram criadas diversas versões deste tema. Porém, o arranjo interpretado pelo Berklee Indian Ensemble, além de ser musicalmente exemplar na subtileza, capacidade técnica e expressão, é aquele que enaltece melhor um sentimento de pertença, saudade, identificação e união, inerentes ao título original e à mensagem do filme para o qual este foi composto.
Fiquei encantado e obcecado pela beleza desta melodia e, por isso, durante alguns dias, não fui capaz de atentar a outra música que não esta. Partilhei-a com os meus colegas de projecto. Falei dela em todas as conversas que se seguiram.
De certa forma, Yeh Jo Des Hai Tera é, tal como o coral da Nona Sinfonia de Beethoven, um louvor à vida.
Graças ao guitarrista Andy Mackee, que sigo nas redes sociais, descobri a música First Impression do disco Second Movement do trio de música folk Dreamer’s Circus. A curiosidade encaminhou-me, depois, para os outros álbuns do conjunto dinamarquês.
Em Setembro estive a trabalhar em Manchester. Um dia, enquanto caminhava pela cidade, os meus ouvidos aterraram no tema Kitchen stories, do álbum Rooftop Series. No minuto 4, o meu coração começou a sorrir intensamente. O ar tornou-se mais afável e as ruas mais amigáveis. Foi como se a escuta de todas as músicas anteriores me tivesse conduzido para uma jubilosa folia musical.
Depois da preparação para o mencionado minuto (o encadeamento de várias secções melódicas que vão aumentando de intensidade, antes de uma pausa preenchida por um harmónico no violino) escutamos uma melodia de semicolcheias bem articuladas e rápidas que transporta, com a sua harmonia festiva e acutilância rítmica, o êxtase musical, o clímax do tema.
Nos anos 90, o Continente costumava despachar CDs por valores irrisórios. Tratavam-se sobretudo de discos que, por esta ou outra razão, já não cabiam nas estantes da discoteca do hipermercado (é verdade, o Continente vendia CDs e até tinha postos de escuta!). O meu passatempo preferido quando os meus pais iam às compras, era percorrer com os dedos todos os CDs disponíveis nas cestas de desconto. Acabava sempre por levar um ou dois CDs. Como não tinha referências que me ajudassem a compreender que discos eram aqueles, muitas vezes o único critério de avaliação era a ilustração ou o design da capa e o nome mais ou menos espectacular de cada álbum. Foi através deste processo irresponsável de análise que conheci a música de Frank Zappa (que se tornou fundamental para o meu percurso artístico), Carlos Santana, Dave Mathews, entre outros.
Uma vez decidi comprar um CD por causa do meu pai. Ele conhecia vagamente o nome da banda: Pinguim Cafe Orchestra. E foi ao explorar um dos seus álbuns que aterrei numa melodia que, ainda hoje, me acompanha. A famosa Music for a found harmonium!
O nome da peça corresponde literalmente à sua fundação. Simon Jeffes encontrou, por acaso, um harmónio no lixo, experimentou-o e inventou a melodia de aromas folclóricos que tem vindo a conquistar várias gerações de ouvintes. A sonoridade modal, composta com o regresso constante à nota principal, depois de saltos intervalares regulares, mas curtos, proporciona uma familiaridade auditivamente apetitosa. Music for a found harmonium sugere algo tradicionalmente europeu. Poderia ser uma giga ou uma chula, poderia ser quase todas as danças melódicas tradicionais. Assim, é inevitável não sentir um aconchego, uma espécie de sabor caseiro, um calor antigo e cativante quando se ouve esta peça.
Termino com uma prenda universal, estreada muito recentemente nas diversas plataformas de streaming etc. Deleitei-me com esta canção várias vezes no final do ano passado. Now and Then, a nova canção dos Beatles, é ao mesmo tempo um modelo de música generosa como de generosidade musical.
Neste gesto artístico deparamo-nos com uma série de partilhas:
– A oportunidade de testemunharmos novamente os quatro Beatles reunidos, ainda que através da tecnologia, e a forte nostalgia que isso estimula. Imbuída nessa nostalgia estão também todas as emoções que as músicas dos Beatles nos provocam;
– A melodia que, como outras melodias de John Lennon, é abrangente e convidativa. Parece simples, acessível, contudo, não é óbvia. O mesmo acontece com a progressão harmónica da canção.
– A letra: “I know it’s true / It’s all because of you / And if I make it through / It’s all because of you // And now and then / If we must start again / Well, we know for sure / That I will love you / (…)” é carinhosa e magnânima. Esta oferece várias direcções e leituras. Tanto consegue evocar a forte conexão entre a banda inglesa e os seus admiradores, como enaltece o amor eterno entre as pessoas cúmplices (como um casal, ou um pai e um filho etc.), ou transmite uma esperança de que melhores dias virão para os espectadores que estejam amargurados. Este poema ganha uma dimensão ainda mais especial, tendo em conta o destino trágico de John Lennon.
Paul McCarteny e Ringo Starr ofereceram-nos uma saudade modificada pelo presente e, com isso, recuperaram, ainda que por instantes, o colectivo de artistas que, num período da história, explicou através da música como é bom ser feliz. Now and Then diz-nos que temos que continuar a criar, continuar a viver, independentemente das perdas, das tristezas, dos constrangimentos que fazem parte da mortalidade.
Perante os flagelos que estão a destruir o nosso mundo, perante a violência que muitos sentem diariamente e outros observam através da televisão, não será urgente curar a humanidade através do amor?