“Nada para ver aqui”, de Nicolas Bouchez: uma contemporânea e colorida “sinfonia de cidade” em destaque no Leiria Film Festival

por Miguel Rico,    8 Maio, 2023
“Nada para ver aqui”, de Nicolas Bouchez: uma contemporânea e colorida “sinfonia de cidade” em destaque no Leiria Film Festival
“Nothing to See Here” (“Nada para ver aqui”), de Nicolas Bouchez
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Poderá um filme, em forma de documentário, sem qualquer tipo de enredo ou sugestão narrativa ser considerado um filme? O dilema não é recente, mas a forma de o abordar tem vindo a alterar-se ao longo dos anos. “Nada para ver aqui”, do jovem realizador Nicolas Bouchez, é uma contemporânea e colorida “sinfonia de cidade”, de andamento lento, que será exibida no Leiria Film Festival, a decorrer entre os dias 10 e 15 de maio. 

A proposta é tão antiga quanto o cinema mudo, uma anatomia rigorosa e abrangente da inquietude da urbe. São inúmeros os exemplos das “sinfonias das cidades”, documentários experimentais que representam o dia-a-dia de uma cidade e cujo ritmo se assemelha, precisamente, ao de uma sinfonia musical.   

“Études sur paris” (1928), de André Sauvage, e “Berlin – Sinfonia de uma Capital” (1927), de Walter Ruttmann, são alguns exemplos de filmes que optaram por fazer do local narrador. Mais tarde, em 1929, o cineasta Dziga Vertov aventurou-se com o célebre “O Homem da Câmara de Filmar” e captou o pulsar quotidiano de uma geografia urbana que se tornou o exemplo mais conhecido da “sinfonia de cidade”. Ainda que a proposta fosse capturar um dia na vida de uma metrópole, Vertov, como bom cineasta, enganou as audiências e filmou em locais como Moscovo, Odessa, Kharkiv e Kiev, durante o período de três anos. 

Regressamos ao Portugal atual, o rasto retilíneo de um avião sublinha a cor do céu, limpo e plano como uma parede pintada de azul-claro, há figuras humanas que olham para o vazio preenchido pela paisagem urbana, outras, quebram a quarta parede com olhar desconfiado, surgem à varanda de sobrolho franzido, recordem-se, não há nada para ver aqui. No eco dos não-lugares uma voz fantasmática tenta alcançar alguém, mas a cidade está vazia, a ausência de uma personagem principal assume, assim, o protagonismo, por muito paradoxal que isso nos pareça.  

A proposta de “Nada para ver aqui”, de Nicolas Bouchez, não é tanto arquivar um período histórico, nem mesmo dissecar o quotidiano ou fazer algum tipo de critica social. O que Bouchez me parece sugerir é documentar e registar uma e só uma experiência, mais singular e individual do que qualquer outra, a do próprio espectador. Deixar que as imagens falem connosco sem que exista a necessidade de nos dizer o que quer que seja é, talvez, a forma mais bonita e genuína de fazer cinema. É a sétima arte a libertar-se da sua obsessão objetiva pela representação do real, neste caso, sem traços de expressionismo, mas antes de impressionismo. Somos deixados com a impressão de um local, a cidade enquanto extensão do “eu”, o sítio como força de expressão numa altura em que o valor capital do espaço urbano é constantemente avaliado.  

“Nada para ver aqui” é a sinfonia contemporânea, moderna e minimalista dos arredores de uma cidade portuguesa, uma curta-metragem com humor, que nos proporciona uma experiência plena e sugere traços de um realismo mágico em que tons pasteis e pontos de fuga de uma arquitetura desajustada nos embalam na leveza reminiscente ao trabalho de Chantal Akerman, “News from Home” (1976). O plano estético do filme é o carácter da sua mensagem, simples, singela e profundamente subjetiva, repleto de imagens lindíssimas que tanto procuram Edward Hopper, como Grant Wood e Richard Estes. 

 O estado meditativo, produzido pelas sobreditas imagens, em que o filme emerge o espectador é, possivelmente, a sua maior proeza. Esta é qualidade pertinente atualmente, pois contrasta a ideia pré-concebida de uma cidade agitada com planos estáticos, como a calmaria de um quadro de Monet. O filme lança-nos, assim, um repto: é difícil encontrar, na nossa própria urbe, na nossa inquietude intrínseca, um momento para parar e refletir, mas é possível, e tudo o que é preciso é, precisamente, parar e olhar, ainda que não exista nada para ver aqui. 

O filme esteve em destaque no Festival Internacional de Berlim, Berlinale, de 2022, onde integrou o Generation programme 2022 e recebeu uma menção honrosa, “Short Film of the Youth Jury in Generation 14plus 2022”. 

“Nada para ver aqui” encontra-se, agora, na Competição Internacional de documentário do Leiria Film Festival e será exibido no dia 11 de Maio, no Teatro Miguel Franco pelas 18h.

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