Não têm pão? Comam inflação
Entrar num supermercado e tentar poupar ao máximo no número de produtos é uma realidade da grande maioria dos portugueses. O INE estima que mais pessoas deixem produtos para trás na prateleira do supermercado hoje do que na altura da Troika. É absolutamente deprimente chegar à conclusão que a minha geração está a viver a sua segunda crise social desde que nasceu.
De facto, impõe-se a questão: porque é que os preços estão tão altos? Quem lucra com a inflação? Se analisarmos os dados, a média dos fatores de produção aumentou 27%, mas o preço praticado pelo produtor aumentou apenas 14%, sendo que o Ministério da Agricultura estima que o setor da produção tenha tido em 2022 uma quebra de rendimentos de 13%. Se ouvíssemos mais o sector, e menos comentadores e analistas comprometidos profissionalmente com as empresas de distribuição, percebíamos que usar os produtores como bodes expiatórios para o preço do retalho não adere minimamente à realidade.
É impossível neste momento dizer de forma clara que a culpa dos preços inflacionados é unicamente das grandes distribuidoras, culpa do próprio governo, que anunciou um Observatório de Preços que já está em efeito desde outubro, e nem sequer essa avaliação foi capaz de fazer. Agora, sei o seguinte. O modelo de negócios das grandes distribuidoras consiste no enorme volume das transações, que é fácil de entender pelas pessoas quando realizam quase todas as suas compras nas grandes superfícies, e por um poder de negociação com o resto da cadeia de valor completamente inquinado. Desde promoções no retalho sustentadas pelos fornecedores, aumento do custo de produtos de marca e baixa acentuada em produtos de marca própria, e incorporação de custos de forma muito mais eficiente que os produtores para manter margem, como denunciado por Bruno Faria Lopes e Ana Taborda na Revista Sábado, fica claro como é que os grupos de distribuição mantêm os seus lucros inalterados.
“Existem sensivelmente 4 milhões de portugueses no limiar da pobreza, sendo que qualificam 1 milhão de famílias. Imagine-se o efeito que teria usar os 500 milhões que custa esta medida e aplicá-los diretamente a quem mais precisa.”
Contudo, para além do diagnóstico incessante do problema, é fundamental que o executivo apresente medidas de mitigação dos preços dos bens alimentares. Sabemos que são as famílias mais pobres que mais sofrem com estes aumentos, dado que gastam maior percentagem dos seus rendimentos em bens essenciais. O governo anunciou a redução do IVA no cabaz alimentar de 6% para 0% durante 6 meses, uma medida muito polémica por ter sido colocada em vigor em Espanha e não ter causado uma redução significativa do preço dos alimentos. No entanto, iniciou também um processo de negociação com as distribuidoras e os produtores para garantir que na prateleira do supermercado é refletida diretamente esta redução no preço dos alimentos, alcançando uma mistura do que foi praticado em Espanha e França.
Francamente, embora em teoria seja favorável a esta medida, peca por muito tardia, e pelo efeito muito reduzido que terá. A SIC Notícias fez uma simulação da poupança do 6% do IVA num cabaz básico de 25 bens essenciais, e verificamos que poupa aos portugueses uns irrisórios 4€ numa conta de supermercado de aproximadamente 60€. Ainda, colocando de parte o provincianismo que é termos um comentador e analista político a avançar medidas deste calibre em vez de uma fonte institucional, é impressionante ver que conservas como alternativas vegan e vegetarianas ficam de fora, que muitas vezes são adotadas por necessidade patológica, e não propriamente por capricho de estilo de vida.
Mais uma vez, o Governo conseguiu o pleno. Com meses a fim de preços a galopar no supermercado, e negando sempre agir no IVA, aguardou que os preços começassem a baixar finalmente para negociar uma medida que mesmo tendo algum impacto, será neste momento muito diluído. É perfeitamente possível achar que um executivo que arrecadou níveis recorde de receitas de IVA pela inflação tinha margem para reduzir o IVA há meses, e perceber que neste momento não é a medida mais eficaz. Existem sensivelmente 4 milhões de portugueses no limiar da pobreza, sendo que qualificam 1 milhão de famílias. Imagine-se o efeito que teria usar os 500 milhões que custa esta medida e aplicá-los diretamente a quem mais precisa.