Narcisismo e individualismo
Criada em 1964 pelo cartunista argentino Quino e tendo marcado os anos 60 e 70, a “Mafaldinha” não deixou de ter uma importância significativa na educação dos Millennials (geração em que me incluo). Mafalda, personagem que teve Umberto Eco como seu fã, é uma criança impertinente e curiosa relativamente aos mais variados assuntos. Não se limita a adorar Beatles e a detestar sopa; também questiona — e faz-nos questionar — a realidade que a rodeia, o mundo constantemente adoentado e uma humanidade igualmente doente. Faz-nos rir quando reflete sobre a possível existência de OVNIS e exclama com indignação: “E, havendo mundos mais evoluídos, porque é que eu tive de nascer neste?” (QUINO, 2013: 3). Apesar da aparente simplicidade das suas palavras, retraímo-nos em desconforto com a verdade nua e crua das suas expressões imaculadas. Mafalda é uma de muitas criações que apelam ao humanismo, à justiça, ao equilíbrio, ao altruísmo e ao bom senso, através do humor e da autocrítica. Em cinquenta e sete anos de existência, nunca caiu no esquecimento, talvez porque a sua crítica social e política, na generalidade, continua bastante atual.
Na tira acima colocada (imagem do artigo), a questão ingénua, mas oportuna, de Mafalda sobre a percentagem de “verdadeiros seres humanos” existentes no planeta Terra não difere muito das minhas indagações relativamente aos tempos modernos. Quase cedo à tentação de me dirigir a uma farmácia e pedir um nervocalm como Mafalda fazia para apaziguar a mente do pai, quando lhe apresentava perguntas difíceis de cariz existencialista. Algo de enervante e desconcertante ocorre há algum tempo; uma pandemia silenciosa que atingiu o seu pico nos últimos anos. Refiro-me ao culto do narcisismo e do individualismo que despe o Homem da sua humanidade, cobre-o de um profundo egoísmo e de vaidade e embala-o de mansinho, sussurrando-lhe ao ouvido a lullaby do “eu”.
Para quem não estiver familiarizado, o substantivo “narcisismo” tem a sua origem no mito grego de Narciso, um jovem belo e indiferente ao amor que, ao ver-se refletido na lagoa de Eco, se apaixona pela sua própria imagem. Narciso acaba por ser engolido pelas águas da lagoa e morre; mesmo depois de morto, continua a contemplar-se nas águas do rio Estige. O termo generalizou-se e hoje utilizamo-lo para descrever qualquer comportamento que valorize mais o “eu” do que o “nós”. Já em psicologia, o Narcisismo é um transtorno de personalidade que provoca nos indivíduos um sentido exagerado da sua própria importância, uma forte necessidade de atenção e admiração e pouca empatia por terceiros, distúrbios causadores de relacionamentos conturbados. Atrás desta máscara de extrema confiança, existe uma autoestima intermitente, vulnerável à menor crítica. Atualmente, torna-se difícil perceber onde se inicia a simples metáfora e onde termina o transtorno psicológico.
O narcisismo, que considero um signo do individualismo, parece ser o novo normal. Mas, talvez, já o seja há algum tempo. Para este “problema”, já nos tinha avisado Fradique Mendes numa carta que escreveu a Bento de S.: “Vir no jornal! eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! […] Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do jornal” e acrescenta que, para verem a sua imagem impressa, as pessoas praticavam “todas as ações – mesmo as boas (QUEIRÓS, 1979: II, 1093).
Estão longe os tempos em que somente a alta sociedade tinha o privilégio de se expor numa folha de jornal. O vírus sofreu mutações e hoje surge nas redes sociais (ou social media). Todos nos tornamos pequenos burgueses que rejubilam ao ver a sua imagem publicada. Muitos praticam o bem, mas alguns, somente, quando ligam a câmara do telemóvel e se filmam a praticar o ato bendito: Ora, um mendigo na rua com fome? Irei comprar umas sandes e preparar o telemóvel para filmar a minha boa ação para inspirar terceiros.
Um gatinho a afogar-se num rio? Espera aí, bichano! Engole só mais uns centilitros de água doce enquanto eu desbloqueio o telemóvel e mostro à câmara o meu ato pseudo-heróico. Black Lives Matter? Ou outra “moda justiceira” do Twitter? (sim, para muitos é uma moda, não é uma causa social) Esperem aí! Deixem-me só vestir a melhor roupa, colocar alguma maquilhagem, sair à rua e fingir que simpatizo com as causas, enquanto faço poses e expressões de tristeza ou revolta. Ao fim de cinco ou dez fotografias, volto para casa e cancelo figuras públicas que disseram (há 10, 15, 100 anos!) algo com que discordo. Se estraguei a vida de alguém, com os meus laivos de justiça conveniente ou interpretações preguiçosas, não me importo! Quase sempre ignoro o contexto porque “eu” quero, “eu” sonho e a obra tem de nascer! O que importa é ter boas intenções, caramba!
Enfim. Os extremos encontram-se: há altruísmo no egoísmo e egoísmo no altruísmo.
Assim vivem; cegos, com um caráter inventado, idealizado para conquistar o mundo. Muitos conseguem-no. Conquistam um mundo pequenino, tão pequenino, quanto o seu bom senso. Já nababos no seu reino riem e esfregam a sua sorte na cara dos perdedores. Mas quando a noite cai e as estrelas despertam, estes pequenos vencedores tropeçam nos seus lençóis, acariciam a almofada e dormem sob o vazio. Um vazio que não corresponde só ao seu caráter, mas também à sua situação: estão sós.
Para além da pura exposição, do culto excessivo à imagem e da colheita forçada de “boas” ações, encontramos outro lado do narcisismo: o individualismo “carpideiro” e maldizente. Já dizia Almada Negreiros, na peça S.O.S, nos anos 30 do passado século:
“O mundo inteiro está dividido em tantos mundozinhos individuais, pequeníssimos, microscópicos, quantos são os seus habitantes. Mas aquele mundo de colaboração de todos, o único mundo real afinal de contas, esse já não existe. Veio cada qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito em migalhas, reduzido a pó, nada!”
Almeida Negreiros (1997: 766)
Em oitenta e poucos anos, o mundo de colaboração não voltou. Continuamos a viver no nada! Os mais sensatos e esperançosos mergulham no pó e buscam estouvadamente pedaços que possam ter sobrado desse mundo numa tentativa desesperada de o consertarem. Vão encontrando alguns retalhos de matéria e com eles geram altruísmo e empatia. Mas o egoísmo, esse hábito pegajoso que se cola à mente mais debilitada, espreita sempre com presunção e, quando damos por isso, a conveniência e a indecência multiplicam-se como ninhadas descontroladas, ofuscando aqueles que ainda possuem vontade de amar o outro. Onde está o bom senso? O bom senso que já Eça de Queirós pedia ao leitor da sociedade portuguesa oitocentista? Não estamos longe da sociedade que Eça descrevia com certa desilusão. Como é que evoluímos tanto, tecnológica e socialmente, e, mesmo assim, continuamos tão pequeninos na nossa bolha?
No mundo contemporâneo, certos indivíduos continuam imersos na própria subjetividade, em posição fetal, a chuchar o dedo num universo particular, paralelo, ridículo e somente seu. Não abrem espaço para se colocarem nos passos do outro, não abdicam de um pedacinho de si para que alguém tenha umas sobras da sua felicidade, não conseguem ignorar a “pujança” de quem ousou ter uma opinião contrária! Insultam, couceiam, zurram e perseguem a abelhinha que os picou. Se são desprezados e desarmados fazem birras como as crianças que ouviram o “Não!”, pela primeira vez, da sua mãe. Tudo isto está à vista de todos, bate-nos no nariz com uma força thoriana (existe? ou acabei de inventar o adjetivo?) sempre que ligamos o ecrã mágico. Sim, meus amigos. As conversas que antigamente se limitavam ao café e que, algumas vezes, geravam belas batalhas gregas — se essas lutas do passado fossem imbuídas de um Tawny — hoje multiplicaram-se numa Rede!
Uma vez ouvi alguém dizer: “Sempre existiram idiotas, a internet só deu uma oportunidade para que a idiotice e a estupidez fossem expressas em maior escala e chegassem a um maior número de pessoas”. É esta a beleza dos media. Infelizmente, aqueles que ainda possuem alguma réstia de sensatez estão quase obrigados a suportá-lo. Mas nunca ninguém disse que a democracia era perfeita, é a melhor solução. E eu prefiro viver num mundo livre em que a idiotice pode ser expressa sem restrições para, assim, podermos distinguir os idiotas. Claro que podemos ignorar e assobiar para o lado, fazermos a nossa vidinha, descansados, sabendo que existem milhares de sujeitos, muitos deles no nosso país, a carpirem que a sua desgraça é maior do que o sofrimento de pessoa X e que, por isso, merecem mais atenção do que a pessoa X. Indivíduos que gritam pelo teclado fora quando há uma vaga de refugiados: “Eh lá! Pela Pátria, homens de Deus! Primeiro os nossos!”, mas depois sacodem com o guarda-chuva um mendigo português que lhes pede uma sopa na rua enquanto dizem, entre dentes, “Tens bom cabedal para ir trabalhar! Tu queres é facilitismos!”. “Comediantes” que derramam pilhérias sobre meninas violadas por moços que apenas se interessaram pelo recorte da minissaia (também existem homens com bom olho para a moda!).
Outros que invocam não sei quantos direitos constitucionais, gracejam com superioridade “Vocês é que caminham com o resto do rebanho” e constroem teorias da conspiração para não usarem uma simples e patética máscara em tempos de pandemia. Qual Bill Gates qual quê, Tó Zé?! Tu queres é ser do contra e fantasiar uma resistência! Nunca vi tanta gente com vontade de apanhar um vírus porque, para eles, o problema é individual. Não é individual, Gertrudes! Não estás a decidir se vais ter filhos ou não, estás a colocar em risco a saúde de outras pessoas! Ter a noção de que também há quem se ataque constantemente, ad hominem, desde a pata torta do seu gato até ao bigode mal aprumado dos seus ancestrais pelas diferentes cores políticas — todos nós sabemos que a Esquerda alimenta os esgazeados de charro na mão e a Direita acaricia as cabecinhas dos betinhos que conduzem os Mercedes dos papás! E já desisti de mencionar as guerrilhas futebolísticas e afins…
A solidariedade está em vias de extinção. Ainda borbulha por aí, é certo. Existem boas almas que em momentos cruciais se apressam a esticar a mão e a puxar desgraçados que bracejam no fundo de um poço, mas são cada vez menos. Estamos num constante “progresso da decadência” como o jovem Eça dizia. Perdemos o mundo da colaboração como Almada acrescentaria. Tudo mudou, mas as mudanças contribuíram sempre para a contínua e desagradável indiferença, para o individualismo mesquinho e para o narcisismo desordeiro. Vivemos sós e morreremos sós, se assim continuarmos (parece, realmente, uma frase retirada da escola existencialista; não tenciono, no entanto, plagiar aqui os pensamentos de Jean Paul-Sartre).
Meus caros, a vida nem sempre é justa. Todos sofremos, uns mais do que outros, em diferentes fases da nossa existência. Rebaixar as adversidades alheias não é solução, por muito que nos pareçam ridículas face a outros problemas no mundo. Não seríamos mais felizes se costurássemos mantinhas de empatia e se simplesmente disséssemos: “Eu não passei pelo que passaste. Não compreendo a tua dor, pois é diferente da minha, mas, como conheço os infortúnios ligados à existência humana, o mínimo que poderei dizer é que sou solidário(a). Juntos encontraremos um alívio físico e/ou mental”?
Insultar e agredir quem pensa de forma diferente não é o mais sensato. Se o que dizem ou fazem não pisa a liberdade alheia, não façamos inimigos. Ódio gera ódio. Violência gera violência. Não fiquemos pelos juízos vagos, nem pelas simplicidades mentais: não existem somente preto ou branco, há muito cinzento a vaguear pelas ideias. O que consideramos verdade ou mentira torna-se a nossa realidade, mas a realidade é diferente para cada um de nós; é subjetiva e dualista e, por vezes, uma ilusão. Deixemos de lado o ego, conversemos e discutamos assuntos com bom senso e tolerância. Da Direita à Esquerda, do doutor ao operário, quem resolve pela palavra vigora no futuro. Devemos relembrar a massa de que somos feitos e perceber se somos verdadeiros seres humanos, de carne e osso, para que a pobre Mafalda tenha finalmente acesso a uma percentagem exata.
Isto são tudo utopias de alguém que ainda é jovem, que mal viveu um quarto de século; ânsias de uma mulher que tem alguma esperança na espécie humana. Poderia continuar com mais exemplos e mais argumentações embebidas em sarcasmo e ironia, mas já se faz tarde… e eu estou cansada, só e triste. Publicarei um autorretrato no Instagram, o que talvez faça disparar os meus níveis de dopamina.
Nota ao leitor: Os nomes próprios referidos, Tó Zé e Gertrudes, foram escolhidos de forma espontânea e aleatória. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Referências:
Quino (2013). A política segundo Mafalda. Lisboa: Edições ASA;
Negreiros, Almada (1997). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar;
Queirós, Eça (1979). Obras de Eça de Queirós. I, II, III Volumes. Porto: Lello & Irmãos.