“Narodnaya”, de Vadim Kostrov: o amor ao que é efémero
A odisseia musical e humana com que o jovem realizador russo Vadim Kostrov nos presenteia na trilogia documental de Narodnaya é imersiva do princípio ao fim. A estreia mundial de cada um dos filmes aconteceu no Cinema São Jorge, no âmbito da edição de 2021 do DocLisboa. Não tendo saído indiferente da visualização do primeiro, vi-me obrigado a voltar, nas noites seguintes, para o segundo e para o terceiro. Não é que seja raro acontecer-nos esta sensação no DocLisboa, mas a trilogia de Narodnaya voltou a confirmar-nos isto: o cinema documental pode ser uma poderosa arma ao serviço da empatia e de aproximação entre culturas. Hoje sou um bocadinho mais russo; um pouco mais indie; certamente, mais livre.
Volta e meia temos a oportunidade de descer ao underground e de optarmos por conhecer expressões artísticas e planos culturais não capturados pelas instituições, pelo mercado ou por qualquer outra regulação social. Esse meio existe, embora por vezes exija que viremos à esquerda no beco, em vez de seguirmos pela avenida. É nessa rua estreita que podemos encontrar espaços como Narodnaya: uma garagem com menos de quarenta metros quadrados, que se torna súbita e temporariamente um espaço de criação artística, fundado por duas jovens russas, num gesto arriscado mas livre de pretensões.
O primeiro filme da trilogia conta-nos a história da criação do espaço, pela voz de quem o fez. Sem qualquer narração auxiliar, somos expostos ao que ali acontece — olhares curiosos, sorrisos amigos, corpos disponíveis para dançar a dois braços de distância das bandas que se dispõem a partilhar o seu talento (seja post rock, hip hop, electrónica, punk, ou qualquer outra coisa indefinida). Tudo acontece em russo: as referências são locais, invariavelmente, pedacinhos da cultura urbana e juvenil de Nizhny Tagil, uma pequena cidade do interior profundo da Rússia, a mais de 1.000 quilómetros de Moscovo.
Em Narodnaya gera-se um confronto entre abordagens: por um lado uma aproximação intelectualizada ao papel da arte na vida das comunidades; por outro, uma perspectiva de pura fruição artística e de lazer, nos corpos que se balançam ao som da música ou no olhar curioso sobre a arte urbana inscrita nas paredes do espaço. Tudo isto regado pelas amizades daquelas vidas que se cruzam, pelo álcool que ajuda à festa, e pelo lugar de encontro humano enquanto se aquece as mãos no fogareiro à entrada – nem as noites de verão dão tréguas, no meio dos Montes Urais.
Em termos estéticos, as imagens são captadas a partir de uma filmagem descomprometida e orgânica. A realização concretiza-se de diferentes formas nos três capítulos da trilogia, mas o que eles têm em comum é essa aproximação próxima e amigável aos rostos retratados; uma certa invasão sem risco, uma proximidade que não castra o comportamento de quem é visado. Essa característica é decorrente da proximidade que o realizador parece ter com parte daquelas pessoas, numa amizade cultivada ao longo do tempo e numa aproximação aparentemente íntima, embora não explícita.
Mas o carácter de cada documentário é pautado por diferenças assinaláveis. O primeiro capítulo, “Narodnaya”, será talvez o mais equilibrado da série, ao juntar moderadamente o tom de imprevisibilidade e fervilhar de ideias presente na sequela, “After Narodnaya”, com a linearidade narrativa e a simplicidade do terceiro documentário, “Comet”. Somando tudo, são quase seis horas de intimidade cozidas a lume brando – somos puxados para o contacto com as pessoas, também nós nos tornamos amigos delas, e no fim podemos associar a nossa própria voz ao canto de “Me and my friends!”.
Seria obviamente injusto não referir o impacto com que a música é apresentada em Narodnaya. Qualquer um dos filmes da trilogia é capaz de sublinhar a efemeridade da performance – na noite de hoje, uma banda tem a oportunidade de fazer algo de único e irrepetível. A música une as pessoas em torno de uma construção não física – um monumento colectivo que não é visível, mas que é vivido, perene na memória de quem nele participa. Se no segundo filme o foco está no transe, no primeiro e no terceiro é explícita a dimensão de catarse. Graças a Vadim Kostrov e à sua inspirada iniciativa de reportar o que já não existe, podemos também nós testemunhar esse lugar, tão físico como psicológico.
Cada um dos filmes foi exibido em sessão única, mas permaneceremos atentos caso surja na internet uma oportunidade de os podermos revisitar. Amostras de uma jovem carreira e de um olhar sensível que certamente terá ainda muito para oferecer; esperemos que a carreira de Vadim Kostrov seja mais do que um cometa que sobrevoou Lisboa neste final de Outubro, tendo por cauda o amor à música, e um respeitoso carinho pelo que é efémero.