Nobel do pincel

por Leonardo Cruz,    9 Outubro, 2022
Nobel do pincel

Quando era criança pensava que todos os livros eram bons. Qualquer pessoa que tivesse a capacidade de escrever um livro teria forçosamente de ser muito inteligente, ter um vocabulário extraordinário, possuir uma superior capacidade para contar uma história.

Com o decorrer dos anos e o incremento das leituras fui percebendo, como é óbvio, que os escritores não são todos iguais, muito menos as suas obras. Conheci livros excelentes, narrativas incríveis, obras-primas irrepetíveis escritas com uma classe incomparável. E outros que eram péssimos, maus, medíocres ou que simplesmente estavam para além da minha compreensão. Nunca esquecerei o quão estúpido me senti quando comecei a ler “O Som e a Fúria” de William Faulkner (o único livro que li e reli de seguida, para o tentar compreender) nem como me surpreendi, capítulo a capítulo, com “Se numa Noite de Inverno um Viajante” de Italo Calvino, com as possibilidades infinitas que aquele romance me mostrou — algo que não pensei ser possível em literatura.

Cresci. Já li muita porcaria, faz parte, é assim a vida. Hoje em dia qualquer idiota escreve um livro — espero que o leitor porventura não tenha encontrado esta crónica num desses objetos: por um lado, vai acabar por dar-me razão; por outro, aperceber-se-á de uma daquelas profecias que se auto-cumprem.

Uma lógica parecida apliquei à arte de rua, nomeadamente aos graffitis — segundo a wikipedia: “uma arte (visual) na forma de uma inscrição caligrafada de elaboração mais complexa que a pichação (nota do autor: é a wikipedia que o diz) ou um desenho pintado sobre um suporte em espaços públicos que não são previstos para esta finalidade (como em paredes), existente desde o Império Romano”.

Toda a vida pensei no tipo de artista grafiteiro como rebelde, talentoso, badass, nada menos que cool, portanto, tudo o que eu queria ser. De Banksy a Vhils, passando por Odeith, Bordalo II, etc, mas nunca esquecendo o anónimo, aquele que deixa frases nos murais da cidade que nos deixam a pensar. O poeta urbano que, para mim, liga as duas artes invejadas: a escrita e a street art (seja esta composta de grafitos ou pichagens).

Não esqueço o que senti quando li em Lisboa, pela primeira vez, a seguinte expressão escrita numa parede: “TANTA GENTE SEM CASA, TANTA CASA SEM GENTE”. É usada em todo o mundo, desconheço a sua origem, mas cada vez que a leio fico meio angustiado. É uma verdade que dói.

Ainda recentemente encontrei, na lateral de uma casa em Ovar, a frase “BLACK LIVES MATTER” e, não muito longe, escrito numa ponte sobre a estrada para Águeda, o inspirador título da canção dos The Smiths “THERE IS A LIGHT THAT NEVER GOES OUT”, que pode muito bem servir de lembrete a algum condutor mais distraído que conduza com os faróis desligados.

A arte de escrever mensagens poderosas nas paredes das ruas tem uma forte tradição no nosso país, quanto mais não fosse no período histórico que compassa o 25 de Abril. Ainda hoje encontramos, nos mais variados lugares, declarações impactantes do género “LEVA A LUTA ATÉ AO VOTO”, por entre convocatórias para greves gerais dos anos 70 ou 80, e coisas desse tipo.

No entanto, tal como me aconteceu com a literatura, acabei por descobrir que nem todos os artistas de rua têm a mesma categoria. Alguns são mais “de trazer por casa”, como diria o meu avô. Há quem opte por afirmações que, não estando erradas, nada trazem de certo: “60% DOS VACINADOS VÃO MORRER” — esta frase pode ser vista em vários locais do país (eventualmente com percentagens diferentes), tornou-se uma epidemia com a pandemia. Apetece-me escrever ao lado de cada uma delas: “OS OUTROS 40% TAMBÉM, Ó CALHAU!”

No entanto, na minha óptica de leitor, prefiro os escribas do óbvio aos artistas que assinam obras inexistentes. Meus, qual é a vossa de assinar sem pintar? Não preciso dar muitos exemplos, todos nós já vimos infinitos gatafunhos nas paredes, supostas assinaturas de “artistas”. O que se passou na cabeça do indivíduo para que, no topo do arco de um túnel do Eixo Norte-Sul, em Lisboa, local onde passam dezenas de milhares de pessoas por dia, com uma visibilidade que faria a inveja de qualquer marca comercial, o que lhe deu para decidir aí escrever em letras gigantes “ALRTE” (se é que li bem)? Mais valia afirmar que a terra é plana, pelo menos usava o espaço para publicitar uma crença, mesmo que idiota. Se o usou para inscrever apenas o seu nome artístico, “tag” como se diz na gíria, pergunto: queres mesmo mostrar que foste tu quem fez essa cagada? Posso parecer mesquinho, mas se eu tivesse aquele espaço à minha disposição e nada para dizer, no mínimo escrevia “vende-se melões a 100 metros” e montava uma banca logo ali entre o túnel do grilo e a ponte Vasco da Gama.

Seja como for, prefiro mil vezes uma frase sem sentido a um “tag” que não me deixa sequer uma dúvida. Em Leiria, diante de uma escola, jaz a enigmática formulação que reza o seguinte: “COM VIDA NÃO TA LIFE”. Correndo o risco de desconhecer o eventual poema onde se insere e o seu significado, ou uma putativa referência básica que qualquer jogador de Fortnite possa reconhecer de imediato, o que é certo é que continuo sem entender como é que alguém, com a possibilidade de exprimir o que quer que seja numa das ruas mais movimentadas da cidade, opta por “COM VIDA NÃO TA LIFE”. Sempre que passo ali questiono-me: o que raios quer aquilo dizer? Leirienses menos exigentes poderão contrariar-me afirmando que este, pelo menos, fez melhor que o seu antecessor que, a dez passos deste epíteto, escreveu num muro junto à rotunda: “PIROCAAA…”.

Não quero falar muito dos erros ortográficos, dá vontade de fazer o que o soldado romano fez a Brian, mas há uma pichação (o que diria Abel Xavier desta palavra?) que deve ser mencionada. Na Serra dos Mangues, perto de São Martinho do Porto, um muro exibia as singelas palavras: “PORTUGUAL ÉSTÁ NA MERDA”. Por sorte tirei-lhe uma foto em 2017 já que, lamentavelmente, alguém pintou de novo o muro apagando a frase que considero genial por duas ordens de razão: a primeira é que, se foi escrita com erros não propositados, não pode ser mais certeira e eloquente; a segunda é que, se os equívocos foram intencionais, é uma piada muito bem conseguida. Olhando com mais atenção para os vocábulos e sua acentuação, o mais provável é ser da autoria de algum espanhol. Mais grave que os pontapés na língua de Camões e no nome do próprio país, é a ousadia de vir um monoglota castelhano dizer-nos aquilo que a gente já sabe, mas só nós temos direito a proferir.

DR

Posso concluir que, se nem todos os escritores são bons e nem todos os grafiteiros são maus (no sentido de bad boys), talvez eu esteja a ver isto do lado errado. Com o meu curto talento para a escrita e o meu “moderno” jeito para pintar paredes, eu teria potencial para ser, sei lá, sério candidato a um prémio que fundisse as duas artes. Um “Nobel do Pincel”. Já estou a pensar em nomes artísticos para assinar os meus maravilhosos escritos nas paredes do mundo. Nomes literários, mas “da street”. Algo que seja inesquecível e marcante. Tipo “Camilo José da Cela” ou “DesGraça Murais”, porém ligando as duas áreas. Por exemplo: “Harold Painter”, “Manuel António Pinta”, “H.G. Wells das Walls”, “Saramago Não Estrago”, “Pencil do Stencil”, “Thomas Pyncha”, “O MEC do TAG”“Hemingway do Driveway”, “O Padura da Gravura”, “Günter Graff”, “Vila-Matas das Latas”, “Steinbeck do Design Black”, “Ivan Pintcharov”, “Salman Brushdie”, “Bukowski do Sprayzowski”, “F. Scott Pintzgerald”…

Vou ver qual consigo assinar melhor.

Quanto às frases, basta retirar citações ao calhas de clássicos da literatura e adaptá-las às ruas. Algo que impacte as pessoas, que as ponha a reflectir na vida enquanto percorrem os morosos caminhos da sua solidão diária.

Por exemplo, deixa cá ver este “O Ano do Pensamento Mágico”, Joan Didion, mesmo no início:

“A vida transforma-se rapidamente. A vida muda num instante. Você senta-se para jantar e aquela vida que você conhecia acaba de repente. Com vida não ta life.”
Ass: Didion del Borrón

As ruas não esquecerão o Didião do Borrão.

Já só falta comprar a ink e escolher a wall. Será que ainda tenho por aqui algum boné?

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