NOS Alive 2024 (dia 1): o glorioso encontro entre o disco e a música alternativa

por Tiago Mendes,    13 Julho, 2024
NOS Alive 2024 (dia 1): o glorioso encontro entre o disco e a música alternativa
Parcels / Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

A cada piscina que fazíamos entre o Palco Heineken e o Palco NOS, ao longo da noite, o sorriso adensava-se-nos na cara. Primeiro adjectivo justo: foi glorioso. É esse o poder da beleza que uma sequência de bons concertos gera em nós. A primeira noite do NOS Alive 2024 foi capaz de emular esse espaço emocional tão especial. Parcels terão sido o signo maior deste mosaico; mas o que se lhes antecedeu e seguiu compôs uma noite com sabor a todo, a bloco inteiro. Foi tão bom.

Algumas noites de NOS Alive dão a sensação que ficarão para a história do festival, e esta primeira da edição de 2024 teve tudo para ser uma delas. O segredo não foi — anotem, festivais de música! — uma cartada milionária de um cabeça-de-cartaz hiper-popular capaz de esgotar quase sozinho um recinto, possibilitando à organização poupar-se na restante programação. Pelo contrário: a primeira noite compôs-se de uma sequência coesa de concertos emotivos e enérgicos devidamente sequenciada (é raro haver tão poucas críticas a conflitos de horários num festival, ainda para mais num dia tão repleto como este).

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Começámos a tarde ao som do dedilhado intricado da guitarra de Ruban Nielson, o líder do projecto neo-zelandês Unknown Mortal Orchestra. Foi um minuto inaugural humilde, com o artista a revelar alguma dificuldade em acertar no riff de “From The Sun”; recordando-nos, logo a partir da linha de partida, a manta complexa e detalhada de que se faz a música desta banda já familiar ao público português. O concerto teve um alinhamento algo reduzido, mas nem por isso soube a pouco, porque os Unknown Mortal Orchestra souberam explorar cada tema com o carinho devido, esticando-os mais que as suas versões de estúdio, por vezes optando por derivações imersivas e psicadélicas antes de regressarem — de forma tão satisfatória — ao tema principal de cada canção.

Esperávamos talvez ter ouvido um pouco mais do mais recente álbum “V”, mas não nos podemos queixar do alinhamento, em que destacamos “Necessary Evil”, “So Good at Being in Trouble”, “Multi-love” e “That Life”. A década que os Unknown Mortal Orchestra trazem às costas é uma montra memorável de pop psicadélico e laivos de funk, capaz de elevar a boa energia do público ao longo daquela hora (abrigado do sol abrasador pela cobertura do Palco Heineken). Soube a concerto de luxo, atendendo à qualidade de ter sido o primeiro da tarde para muitos dos festivaleiros que chegavam ao Passeio Marítimo de Algés no final de tarde de uma quinta-feira.

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

De caminho para o Palco NOS passamos pelo Palco WTF Clubbing, para um momento de descontraído comic relief musical protagonizado pelo projecto português Conjunto Corona. A dupla composta por David Bruno e Logos conduziu um espectáculo que cose de forma exemplar uma exploração da cultura portuguesa e um humor simultaneamente absurdo e requintado (e com tantas referências a Isaltino Morais por metro quadrado); com muito respeito pelo público, a quem agradeceram muito a gentileza de os acolherem com tanto calor humano. Pelo meio, refrões que se aprendem em dez segundos, e que cantamos com a confiança de quem os conhece desde sempre. Destaque para a voz de David Bruno, dono de um timbre único no panorama musical, tranquilo, expressivo e inspirador. Falamos a sério!

Não pudemos ficar todo o concerto, porque quisemos assistir do princípio ao concerto de Benjamin Clementine no palco principal do festival. Apesar de ser uma presença frequente nos palcos portugueses, também nos últimos anos, desde 2018 que não se apresentava entre nós num formato de festival. Calhou-lhe na rifa um set de pôr-do-sol no palco principal, com uma plateia disponível para acolher o seu talento. Num primeiro segmento do concerto, o músico britânico focou-se numa série de canções do seu mais recente trabalho “And I Have Been”, lançado em 2022. Apesar de os riffs de teclados destas canções fazerem lembrar uma certa energia constante em algumas músicas de Nina Simone (poderíamos alegar que também a intensidade com que Benjamin as interpreta se aproxima desse referente), e da diversidade instrumental em palco ser digna de nota, a composição dos temas não nos fascinou. Pareceu-nos que o espectáculo começou morno.

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

A correcção de rota da segunda metade — Clementine sentou-se finalmente ao piano, o lugar onde se torna rei – elevou o concerto para um outro patamar duplamente satisfatório, e emotivo. “Condolences” — em que o artista pede uma expressiva colaboração do público — e “Cornerstone” serão dois dos indiscutíveis momentos mais emotivos da noite.

Foi com pena que não assistimos mais de perto ao concerto dos The Smashing Pumpkins. Fruímo-lo à distância, meio distraidamente, entre afazeres que incluíam descansar um pouco as pernas, acomodar o estômago e repor as energias para a segunda metade da noite. O que ouvimos confirma o seu estatuto como representantes de um som importante no desenvolvimento do rock alternativo nos anos 90. Aliás, horas depois do seu concerto Win Buttler (Arcade Fire) viria a confirmar isso mesmo, partilhando com o público a honra que era tocar a seguir àqueles gigantes, que tanto haviam inspirado musicalmente a juventude da banda canadiana. Ao ponto de interpretar um excerto de “Today” no final de “Afterlife”. As guitarras soaram super nítidas em The Smashing Pumpkins, característica que, aliás, marcou grande parte da noite no Nos Alive: som exímio, claro, bem definido, em quase todos os concertos. Exemplar.

Seguimos para o palco Heineken quinze minutos antes do concerto de Parcels começar, tentando encontrar um lugar o mais centrado possível no interior da tenda. Já não foi tarefa fácil, tendo em conta a densidade de pessoas que guardavam já àquela hora o seu lugar. Essa foi, de resto, uma das opções acolhidas com mais divisão pelo público do festival deste dia: Parcels programados fora do palco principal; essencialmente para gáudio de quem conseguiu entrar na tenda e frustração de quem teve de ouvir de fora sem conseguir ver os artistas, mas tendo uma temperatura ambiente menos sufocante e expectavelmente alguns centímetros extra à sua volta para dançar ao som absolutamente contagiante da banda australiana.

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Dislaimer: foi o anúncio de Parcels que fez o autor desta reportagem decidir marcar presença no NOS Alive. O concerto dos Parcels naquele mesmo palco dois anos antes, carinhosamente mencionado pela banda como um momento marcante (“We did it again!”, partilha um dos membros, perto do fim), havia sido um dos melhores concertos do ano em Portugal (numa noite em que também haviam actuado em Algés Phoebe Bridgers e as HAIM, recorde-se). Quisemos repetir a dose. Mas os Parcels não se repetiram: ao contrário de uma fórmula mais electrónica e com arranjo quase em modo “dj set” de 2022, desta vez o concerto tive uma aura assinaladamente mais equilibrada e orgânica, integrando diferentes facetas do caleidoscópio que são os seus concertos ao vivo.

Conduzido com confiança pelos belíssimos arranjos da banda, muitas vezes fundindo as canções num continuum absolutamente satisfatório, o público raras vezes deixou de se manifestar ao longo dos 70 minutos de concerto: muita dança em pouco espaço para os pés, saltos, gritos, cantos. É um exercício difícil destacar momentos específicos, pela forma como o espectáculo tem um sabor a unidade. Mas a secção final do concerto, com “Everyroad”, “Tieduprightnow”, “Overnight” e o belíssimo e emotivo novo arranjo de “Free” fecharam com chave de ouro talvez o mais caloroso momento da noite. Um dos membros dos Parcels desabafava, a certa altura, que por eles continuavam a tocar mais tempo — o concerto nas Red Rocks (Colorado) publicado no Youtube há menos de um mês atesta as duas horas e dez minutos de concerto mágico que a banda é capaz de criar. Estará para breve a primeira apresentação em nome próprio em Portugal? Os Parcels e o público português merecem-no.

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Em simultâneo com o final daquele concerto, começava no Palco NOS a actuação dos cabeças-de-cartaz da noite, os Arcade Fire. O NOS Alive terá perdido uma oportunidade de acolher um dos espectáculos especiais que a banda está a tocar ao longo deste ano, em que interpreta o seu primeiro álbum de estúdio (“Funeral”, 2004) na íntegra, a propósito do vigésimo aniversário desse disco. No início ainda ficámos na expectativa se seria a isso que iríamos assistir, com “Neighborhood #1” e “#2” a serem tocadas na abertura do concerto: um pouco mais à frente percebemos que o se seguiria seria mais um concerto à moda das “eras da Taylor Swift”, com a escolha de dois a três temas de cada álbum a percorrerem a carreira dos Arcade Fire, em blocos bem delineados.

Foi com alguma distância — física e emocional — que nos posicionámos para assistir ao concerto. Vínhamos embalados de Parcels, e com alguma resistência a fruir totalmente o concerto de Arcade Fire, banda que na sequência de uma série de alegações de conduta imprópria por parte do vocalista (tornadas públicas há alguns anos) sugou um pouco do encanto que a banda nos causava. Mas demos por nós a saltar e a cantar as músicas energicamente, numa reacção intuitiva ao estímulo que aquele cancioneiro motiva no corpo. Um concerto competente, apesar de algo previsível (maldição de que muitas bandas parecem sofrer quando lhes passa a bastar apresentar as canções de sempre).

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Um pormenor bonito, que se evidenciou a meio do concerto, foi a percepção da coesão da noite em torno do género musical disco — “Age of Anxiety II (Rabbit Hole)”, assim como algumas das músicas de Reflektor (de forma mais alternativa), funcionaram como conectores evidentes entre os concertos de Parcels e Jessie Ware, revelando um arco de programação estranhamente coerente. É bom quando o alinhamento de um fetival nos apresenta arcos deste género.

Foi precisamente no concerto de Jessie Ware que terminámos a noite. Apesar de frequentadora regular dos festivais portugueses, foi a primeira vez que o autor desta reportagem pode assistir ao seu espectáculo. E que espectáculo! Coreografado ao milímetro — de uma forma simultaneamente simples e ambiciosa, com coreografias de dois bailarinos e duas cantoras de apoio, em que a própria Jessie Ware se integrava com uma naturalidade cativante — o espectáculo criou uma pista de dança acolhedora. Sentiu-se a plateia aquecer ao longo do espectáculo, depois de uns primeiros minutos em que nos pareceu que o público não estava a corresponder à energia do palco (a noite já ia longa, é certo); isto apesar da voz exímia da artista, cujos agudos não deixaram de nos impressionar ao longo da sua performance.

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Lá se chegou: a esse êxtase colectivo, manifesto numa secção final do concerto especialmente marcante. “Lift You Up”, um tema novo em folha interpretado em conjunto com Romy na sua versão gravada, conquistou. Mas foi com o cover de “Believe”, de Cher, que o palco Heneiken tremeu com a emoção do público, subitamente despertado para níveis de energia próximos dos de Parcels. É a magia da música intemporal. O concerto fechou de forma impecável com “Free Yourself”, um dos melhores temas da artista, com coreografia impactante.

Nota final para a organização do NOS Alive; uma experiência positiva no recinto, com o público a fluir relativamente bem no recinto, e as carpetes verdes que cobrem o chão de todo o recinto a tornarem-no um espaço mais acolhedor. Com alinhamentos inspirados como este, e citando Jessie Ware, “Don’t stop!”, NOS Alive. Mais um trocadilho: “today was the greatest day I’ve ever known”; hipérbole, mas as memórias desta noite e a marca que a boa música causa em nós não é uma experiência negligenciável na vida.

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