Nós, os imortais
Vivemos obcecados com a imortalidade. Quanto mais não seja, por via da herança genética: é este o desígnio da humanidade. Desde as pirâmides de Gizé à compra do Twitter, talvez nenhum humano tenha pisado o planeta sem o desejo secreto de ser lembrado para todo o sempre: ver o seu nome numa placa toponímica, ser a comemorada razão de um feriado, apelidar uma apetitosa forma de confecionar bacalhau.
A cultura egocentrada do séc XXI, que tão bem se traduz nas ditas “redes sociais”, em geral, assim como na literatura, em particular (de Karl Ove Knausgard, outrora chamado de “o escritor da geração selfie”, até às crónicas deste palerma que vos escreve), essa cultura do eu não é mais do que um expoente pós-moderno da vontade de alcançar o olimpo dos eternos.
Noutros tempos tentou almejar-se esse propósito através de grandes feitos, bons ou maus, fosse por tornar-se o atleta mais rápido ou, simplesmente, por assassinar um político ou um artista popular. Porém, hoje em dia, a facilidade com que podemos tornar-nos conhecidos fez com que apenas queiramos chegar lá.
E mesmo que qualquer idiota se torne famoso com facilidade, convenhamos que serão poucos aqueles cujo nome permanecerá muito para além do corpo. “Aqui jaz Tony Apolinário, o tipo que caiu de skate num monte de estrume fresco enquanto tentava descer uma rampa de cascalho, todo nu, guiando um drone com uma mão enquanto com a outra tentava espetar uma galinha de látex no rabo, ao mesmo tempo que cantava o hino do Partido Social Democrata, num vídeo que se tornou viral em 2007”. Este poderá ser o epitáfio de uma dessas “celebridades”, mas quem a recordará para além dos que visitarem a sua campa?
Menos serão ainda os que perdurarão na memória colectiva pelo pouco afinco, isto é, pela inabilidade com que nasceram para lidar com tarefas mundanas essenciais à vida adulta. Mas cada um vai a jogo com o que tem.
Lembrei-me disto há dias por uma pergunta que me foi feita num tom desconfiado:
— Quem é que abriu esta caixa, menino Leonardo?
Quando a questão contém a resposta, o ónus do raciocínio fica a modos que facilitado. Ainda assim, fui confirmar. Tratava-se de uma caixa de sacos de gelo que havia sido aberta através de um método, digamos, menos ortodoxo. Se apenas estávamos os dois naquela casa, e não havia sido ela a inaugurar a embalagem, a pergunta era não só escusada como parecia conter no tom ligeira crítica.
A minha resposta foi decidida, porventura filosófica; e não menos literária:
— Ninguém.
Apesar de não identificar o autor, a resposta era evidente. A caixa, cuja abertura “fácil” se encontrava esventrada por dedos gordos de unhas curtas apenas numa das metades (o tempo que o cérebro do proprietário das esgravatadoras falangetas demorou a encontrar o orifício do invólucro), só podia ter sido aberta por mim.
— Pela maneira como este cartão foi violado, só pode haver um suspeito de ter protagonizado este bonito serviço, um autêntico crime — disse ela, ao estilo de “Law and Order”, ou de uma dessas séries que se vê na televisão.
Não me fiquei:
— Sabes quantas pessoas lutam arduamente, dia sim, dia também, por conseguirem deixar no mundo a sua imagem de marca? Um cunho indelével? Uma assinatura inconfundível? Sabes? Uma pessoa que tem um artista desta qualidade em casa, só tem que o valorizar, digo eu. Quem foi o ditador das aberturas das caixas de sacos para gelo que castrou a liberdade artística dos seus utilizadores? Diz-me quem é o Marcelo Caetano das embalagens de cartão, que eu serei sempre o seu Salgueiro Maia!
Deixou-me a falar sozinho, mas eu desculpo-a. Estávamos na preparação da passagem de ano, e havia muito que fazer por ambos.
Da minha parte, cumpri com o prometido, não olvidando nunca o meu estilo. Cortei meia cebola (com o tempo e cuidado necessários a evitar qualquer tipo de corte nos dedos) e esmaguei quatro dentes de alho, conjunto que coloquei a fritar com três (nunca menos) fios de azeite. Noutro bico do fogão, três fósforos depois, pus ao lume um tacho meio cheio de água. Em pouco tempo, tudo o que pertencia à minha lista estava pronto: sangria de espumante com frutas espapaçadas, uma tábua de queijos cortados em formatos heterogéneos e uma outra de enchidos laminados em fatias de grossuras diversas.
Sentia-me um urso, mas no sentido daquela série de TV, em que um jovem e talentoso chef tenta recuperar um antigo restaurante de família. Ao contrário da ficção, aqui o caos na cozinha é provocado apenas por uma só pessoa.
Para prato principal, uma spag-bol a la chef Leo, com esparguete insosso e salgada carne à bolonhesa, numa mistura complementar de fusão que fez os convidados delirarem com a fresca sangria de espumante, que quase não chegava para as encomendas. Para sobremesa, não exigi a mim próprio menos criatividade: puré de frutas diversas embebido em sangria de espumante, a servir assim que o jarro da mesma fosse despejado.
Uma coisa posso garantir: os convidados não esquecerão a ementa. Não tanto pela originalidade das escolhas como pela forma como foram apresentadas, seguindo a tendência vanguardista de conferir uma nova vida ao que já existe ou, se preferirem, de tornar moderno o que era clássico. Algo que, modéstia à parte, não será certamente para todos.
Não foi com comedido orgulho que entrei no novo ano. Com a certeza de que, dê por onde der, posso contar que o meu legado perdure. E, quando eu for desta para melhor, algures lá por casa encontrar-se-ão vestígios de tão inábil existência: uma rolha de cortiça partida ao meio; uma peça de roupa mal dobrada; uma cama feita com os lençóis enrugados; um caríssimo livro de edição fac-similada cujas páginas fui eu mesmo que cortei, deixando-as arruinadas para sempre; um quadro torto — tudo memórias físicas de alguém que não receou utilizar menos convencionais metodologias de feitura. Mas também nas ruas, na vida quotidiana, enquanto houver gente a tropeçar em degraus; ou que mete o pé para tentar evitar que um objeto caia no chão, porém acabe por chutá-lo sem querer contra uma parede; enquanto for servido um ovo mal cozido; ou sempre que uma bola rematada para a baliza encontre a linha lateral do campo — não serei esquecido. E é isso que me dá alento: o conforto de ser recordado daqui por 100 anos.
— Siri 47.0, mostra à avó aquele vídeo do dia em que a prima deixou cair a travessa de comida em cima da tia Belinha.
— Netinha, sabes quem me fez lembrar? Aquele tipo do século passado que escrevia umas crónicas meio parvas. Como é que ele se chamava?