NOS Primavera Sound: um começo forte de grandes concertos
O primeiro dia do NOS Primavera Sound começou chuvoso mas isso não desencorajou as enormes multidões que esgotaram o Parque da Cidade. A tarde e noite de música afastaram o mau tempo e as várias bandas e artistas que marcaram presença no arranque do festival iluminaram o céu nublado com o brilho dos seus temas. Foi um começo promissor e um indício de mais uma edição que terá certamente vários momentos a recordar.
Chegamos ao recinto ao som de Fogo Fogo, banda luso-africana que inaugurava o novo palco SEAT com muita energia. A sua fusão de ritmos rápidos e intrincados com guitarra quente inspirou o público que já se encontrava a vê-los a tirar o pé do chão, numa espécie de dança da chuva invertida, que parece ter funcionado, felizmente. A banda passou rapidamente das matinés dançantes na Casa Independente – espaço lisboeta que catalisou a formação do grupo – para palcos tão grandes como este, numa rota ascendente que não os atemorizou, tomando qualquer palco como seu e enchendo-o com um som cabo-verdiano moderno, espelhado no EP lançado no passado Domingo, Nha Cutelo.
Entretanto, Waxahatchee, banda liderada por Katie Crutchfield e composta exclusivamente por elementos femininos, subiu ao maior palco do festival para dar um concerto que lucraria com um contexto diferente. A banda oscilava entre um indie rock mais soalheiro e o grunge mais ruidoso, numa mistura que raramente se destacou, não fazendo uma grande ligação com o público, que se ia abanando distraidamente e provavelmente pensando no quão bom seria poder assistir a este concerto sentado na relva, com o sol vespertino do Porto a alumiá-los. Apesar disso, Katie foi uma frontwoman cheia de boas intenções. “Quem está ansioso por ver Lorde?”, pergunta-nos, atirando-se a uma versão a capella de “Homemade Dynamite”. A certa altura, ficou sozinha em palco, dedilhando a sua guitarra acústica numa canção doce que encheu o recinto, num encontro honesto entre artista e público.
Depois de Waxahatchee terem inaugurado o palco NOS foi a vez de Starcrawler mostrarem a este dia enublado do Porto toda a pujança da sua solarenga cidade natal de Los Angeles. Os norte-americanos abriram a sua actuação com “Love’s Gone Again” de riff de guitarra possante e contínuo, antes de Arrow de Wilde entrar em palco e vociferar a letra da música de forma monotónica mas muito adequada ao tema. A vocalista foi uma força imparável durante o concerto, aos saltos pelo palco e acompanhando as guitarras barulhentas de Henri Cash. Starcrawler, o álbum de estreia da banda, carregou este final de tarde com toda a energia punk que o grupo mostra, e a infame “Pussy Tower” ouviu-se bem alto, um grito que abafou as bandas que se ouviam nos outros palcos. Se a chuva estava a pensar em voltar, recuou derrotada depois do “pontapé” sonoro da actuação de Starcrawler.
Regressados ao palco SEAT, ouvimos The Twilight Sad agradecer ao Porto o tempo que lhes proporcionou, lembrando-os de casa, a nublada Glasgow: com o sotaque do vocalista, James Graham, é difícil de enganar. Banda que caminha por entre o post-punk e o shoegaze, trouxe canções abrasivas e escuras, mas com um coração que bate por trás de todo o barulho, graças às teclas melódicas e às nuances vocais, que tanto podem soar adocicadas e nostálgicas, como agressivas e até desafinadas. James entrega-se completamente em palco, abanando-se e gritando intensamente, enquanto o resto da banda lhe fornece a camada de som necessária à libertação. O concerto acabou com uma cover dos Frightened Rabbit, “Keep Yourself Warm”, e com o vocalista lavado em lágrimas. O que quer que o tenha tocado, tocou também o público, que aplaudiu e apoiou aquela partilha de emoções.
Não sabíamos como iria correr o concerto de Rhye no palco NOS, dado que a tradução ao vivo feita pela banda por vezes não se adequa a festivais. Aqui, pode-se dizer que não foi insatisfatória: a mixagem de som privilegiou a voz, que se ouviu, límpida e bela, como quando Milosh no-la apresentou em Woman, álbum de estreia lançado em 2013. O som encheu o grande palco e equilibrou bem as camadas sonoras de todos os elementos em palco. Por outro lado, a música de Rhye pede que as canções sejam tocadas como foram criadas, algo que nem sempre acontece. Milosh perde-se nalguns devaneios mais R&B que acabam por retirar sensualidade às canções; “3 Days”, canção que abriu o concerto, é tocada sem o seu ritmo característico e teclas sedosas, perdendo força. Por outro lado, “Major Minor Love” lucrou com o seu prolongamento improvisado e as canções do mais recente Blood soaram aguçadas e polidas. Despedimo-nos ao som de “Phoenix” e vamos para outras paragens.
Josh Tillman sob o seu alias de Father John Misty é já um nome mais que conhecido por terras lusas. Além de conhecido, é também um grande favorito, tendo em conta a multidão que se juntou ontem no palco SEAT para assistir ao seu set de final de tarde. Quase uma hora repleta de temas transversais ao repertório, começando com singles de cada um dos três primeiros álbuns, “Nancy from Now On”, “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)” e “Total Entertainment Forever”. Ainda que menos jocoso e falador que o habitual, Tillman entregou um concerto de grande intensidade, com os sopros e as percussões, bem articuladas com o espetáculo de luzes, a ecoarem, particularmente no hino sardónico “Pure Comedy”. Do novo álbum lançado este ano, God’s Favorite Costumer, pudemos ouvir de seguida rendições das enérgicas “Disapointing Diamonds Are the Rarest of Them All” e “Mr. Tillman” e das mais introspetivas “Please Don’t Die” e “Hangout at the Gallows”, revendo-se já uma coordenação surpreendente entre os membros da banda, para músicas que só muito recentemente foram incluídas na setlist. Para o final do show o cantautor americano cedeu mais aos habituais devaneios dançantes, culminando o mesmo com as rendições de “I Love You, Honeybear” e “The Ideal Husband”.
Ao mesmo tempo que Father John Misty, Ezra Furman fazia algo semelhante, a uma escala menor e talvez mais revivalista. Acompanhado de uma banda totalmente vestida de branco, foi carismático e energético, conquistando o público de forma gradual num dos melhores concertos da noite. “Nós começamos de forma suave, mas não nos mantemos assim”, e realmente assim foi, pois obrigaram o público a abanar a anca como se estivessem num concerto rock intemporal. A importância de Ezra vem também da sua figura andrógina e de género não conformativo, que dedica canções a todas as pessoas queer na audiência, numa mensagem de liberdade inclusiva e honesta. A felicidade ébria espelha-se no seu rosto ao dizer que não imaginaria alguma vez a fazer aquilo que estava ali a fazer connosco, atirando-se nova e rapidamente a canções rápidas, tingidas com o saxofone idiossincrático de Tim Sandusky, nas quais a característica mais gritante é mesmo a voz de Furman: soa já a clássico, passando por um tom ríspido reminiscente de Janis Joplin, pela abrasividade do punk e até lembrando outros contemporâneos revivalistas, como Dan Bejar, dos Destroyer. No meio disto tudo, ainda há tempo para uma cover de Kate Bush. Urge um regresso rápido a terras lusas.
A pop de Lorde apresentou-se como esperado, para deleite dos fãs que lhe faziam espera desde o final da tarde – melodias contagiantes e ritmos envolventes. As composições da artista revelam, na fruição colectiva, uma alegria muito característica: exemplo disso é ‘Green Light’, a canção que encerrou o concerto. Olhando à volta, contavam-se pelos dedos da mão as pessoas que não saltavam e sorriam em simultâneo (e não estávamos perto da frente). Embora talvez o espectáculo ganhasse com backing vocals ao vivo, Lorde cantou com expressão e entrega. Em discursos intimistas, numa atenção muito particular pelos fãs da sua música, manifestou carinho pelo público português: “Há qualquer coisa de especial em Portugal”; e recordou a sua primeira actuação por cá, em Lisboa, “uma noite de vento frio” quando ainda tinha apenas 17 anos, em que abriu para Arcade Fire. Um concerto cintilante e cheio, com direito a mais canções de Pure Heroine do que o habitual, e em que constantemente nos incentivou a dançar a multiplicidade de emoções que enclausura na sua pop inspirada.
Tyler, the Creator era um dos cabeças de cartaz para este dia e a sua actuação encerrou o palco Seat de forma digna. Estreou-se em Portugal de colete reflector, como no videoclipe de “OKRA”, um tema que ao soar não deixou ninguém indiferente com a sua batida grave e engolfante. Tocou várias músicas do seu recente trabalho Flower Boy, mas não se esqueceu de quem o segue há largos anos: “É muito fixe vocês terem gostado deste álbum e destas músicas, mas agora vou tocar umas coisas mais antigas, está bem?”, disse o rapper, antes das guitarras incessantes de “Deathcamp” se ouvirem no instrumental digital e único companheiro do artista em palco. “Ifhy” mostrou toda a intensidade e emoção que sempre esteve presente na música de Tyler mas que se apresenta agora refinada e “Tamale” foi um dos vários momentos em que a casa veio abaixo, antes de “Who Dat Boy” a reduzir a pó. Tirou o colete para um dos pontos altos da actuação, a confessional “November”. Cantou-a sentado, resignado, emocional na pose e nas palavras. E apesar de a sua entrega vocal ter sido incansável durante todo o concerto algumas das músicas de Flower Boy pediam mais instrumentação: notou-se a falta da guitarra pachorrenta a acompanhar o início de “Boredom” ou a bateria tensa de “Garden Shed”. Mas “See You Again” terminou a actuação em grande estilo e com toda a gente a cantar. A estreia de Tyler, the Creator em Portugal foi curta mas mais do que merecida. Vimos a flor deste último projecto mostrar-se ao sol nocturno, mas foi pena não se ver mais do resto do buquê.
Quando o dia se renovou, a música virou-se para a cultura clubbing. No novo palco Primavera Bits, o ambiente era urbano e propício ao techno saltitante de DJ Fra, que substituiu Mall Grab (que infelizmente teve de cancelar o seu set) em grande estilo. O DJ ia introduzindo teclas luxuosas e mudanças de ritmo subtis, entusiasmando o público ainda algo esparso que dançava com vontade. Ao mesmo tempo, Jamie xx fazia o seu set no palco NOS, não perdendo intensidade de som nessa tradução. Intercalando canções do seu excelente In Colour com outras faixas electrónicas, o ritmo mudava frequentemente, impelindo a mexer o corpo, mas mantendo sempre a toada que se lhe reconhece e que alguns decerto apreciarão mais que outros. Certo é que a encosta se manteve sempre coberta de pessoas até ao final do set, que surpreendeu pela duração curta.
A festa seguiu até altas horas com belíssimos nomes da electrónica: Gerd Janson e Motor City Drum Ensemble. Mas muitos dos festivaleiros terminaram a festa com Jamie xx. Compreende-se: o dia de hoje será certamente mais longo e com a adição de mais um palco as pernas pediam descanso em antecipação. Hoje a festa continua, com muita animação e música para todos os gostos.
Artigo escrito com contribuições de Bernardo Crastes, Miguel Santos, Sara Costa Dias e Tiago Mendes.
Este artigo foi editado às 15h46 para rectificação da informação relativa à atuação de DJ Fra.