Nossa Lisboa (dia 1): um mergulho na Lisboa Criola
O primeiro dia do festival Nossa Lisboa juntou na Altice Arena uma programação de luxo: todos os artistas que deram concertos nos três palcos montados no exterior e interior do recinto tinham em comum o facto de residirem na Grande Lisboa; mas o foco estava na diversidade das suas raízes, distribuídas pelos países de língua oficial portuguesa. Houve assim espaço para o semba, o samba, as mornas, o funaná, e toda a fusão que estes géneros têm vindo a dar à luz no cenário musical contemporâneo. A premissa parecia-me única, com sabor a novidade, uma criteriosa escolha musical e a transbordar ecletismo. Assim que vi o anúncio do cartaz, há dois meses atrás, decidi que teria de ali estar a marcar presença.
O ambiente era de festa, e as restrições impactadas pela pandemia batalhavam constantemente com a sede imensa de celebração da maioria do público ali presente. Sim, existiam lugares atribuídos – mas a organização não garantiu o controlo total da ordem. Tirava-se a máscara para beber, poucos eram os que se mantinham sentados no seu lugar, e o esforço da equipa de segurança lá tentava desmobilizar danças a pares ou fora dos lugares. Um fenómeno difícil, o de lutar contra a força dos ritmos escolhidos para colorir o Nossa Lisboa: civismo versus funaná é uma equação de resultado imprevisível, principalmente numa arena com tanta gente.
Mas vamos à música. Como em todos os festivais, o percurso é feito de escolhas e é impossível assistir-se a todos os concertos que gostaríamos. Começámos na Sala Tejo, o palco subterrâneo nas traseiras da Altice Arena, onde ouvimos o concerto de Toty Sa’Med, cantor e multi-instrumentista angolano que encheu o palco através de uma performance intimista e acolhedora, ao comando da sua guitarra acústica, elétrica e de um discreto sintetizador utilizado para providenciar linhas de baixo às composições. A mestria sobre o looper permitiu-lhe a construção de pequenos universos que, não raro, eram dotados de terna beleza. Um concerto que talvez tenha tido alguma dificuldade em afirmar-se ao longo da hora completa de actuação, mas que teve na sua música de abertura (“Kaluanda”, construída num lento e interpelativo crescente, emocionante) e em “Namoro” alguns dos seus pontos altos. A voz de Toty é ampla, cheia, expressiva e quente – um nome a manter debaixo de olho.
Seguiram-se os Calema, no palco principal da Altice Arena. O público acolheu a banda são tomense com uma euforia assinalável, levantando-se de um imediato nos seus lugares para acompanharem a odisseia musical e visual que apresentam ao longo do seu concerto (foram os efeitos visuais mais ambiciosos de toda a noite). A mega produção, que se percebia desenhada ao detalhe, correu temas conhecidos do público e puxava pela emoção da sala. A mistura de som, contudo, terá ficado um pouco aquém da maioria dos restantes concertos da noite, tendo o volume sido excessivamente elevado (nomeadamente da bateria) e a mistura dos instrumentos demasiado caótica, unidimensional. Mas a festa aconteceu ali, num momento de consagração da fusão entre música pop e o kizomba.
No palco secundário actuou em seguida Luca Argel – primeiro para uma plateia muito reduzida, por se ter sobreposto com o final do concerto dos Calema, mas progressivamente para um público mais alargado à medida que as pessoas chegavam. O concerto de Luca Argel, brasileiro que trouxe o samba para o festival, deixou-me de sorriso na cara todo o tempo. O artista teve a preocupação de situar o contexto de cada canção numa reflexão mais ampla sobre o lugar da música na cidade, e sobre a história do próprio género musical na sua relação com as periferias e a sociedade. Fê-lo por meio de uma banda generosa e diversa, sorridente, que contagiava os presentes que se balançavam e sorriam nas cadeiras. Foi um daqueles concertos que enchem o coração de uma maneira que não vale a pena tentar entender.
Mas chegava a vez da grande Mayra Andrade subir ao palco na sala principal da Altice Arena. A artista cabo-verdiana levou a sua morna e funaná, fundida com a música electrónica e, surpreendemente, até com uma certa faceta progressiva e mesmo psicadélica. Foi um concerto surpreendente em todas as frentes, para estes ouvidos que já conheciam o seu último álbum mas não esperavam uma performance tão ambiciosa e alternativa. No meu entender, Mayra proporcionou o melhor concerto da noite – a sala atingiu o seu ponto máximo de lotação, a qualidade de som estava impecável, a escolha de repertório não desiludiu num único tema, e os prolongamentos instrumentais das músicas, com variações épicas e modeladas (que contaram com a voz da artista processada num criativo vocoder, a fazer lembrar as experiências recentes de Bon Iver) a pautar o ritmo e as cores que não terão deixado praticamente ninguém indiferente. Já ninguém deixaria de dançar até ao final da noite.
A multidão avança em grupo para a Sala Tejo, para ver Bonga, formando longas filas no acesso e rapidamente enchendo a lotação da sala. Para quem ficou de fora, a situação terá sido imensamente frustrante, até que a organização conseguiu abrir o acesso a umas galerias laterais e permitir a entrada de mais algumas centenas de pessoas. Mas para quem conseguiu aceder ao espaço o ambiente estava de festa completa. Bonga proporcionou um espectáculo imensamente popular, correndo muitos dos seus mais conhecidos temas em versões ligeiramente mais abreviadas dos mesmos do que aquilo que os mesmos mereceriam, mas mostrando uma montra de muitos dos sucessos da sua carreira. Era tanto o ambiente de festa que o som da música se mesclava com o das pessoas, e a acústica da Sala Tejo não terá permitido as melhores condições de usufruto sónico. Mas era a noite do semba, e esse calor impresso nos corpos de quem o sentia e dançava testemunham tudo o que de bom a música nos oferece.
A noite iria terminar com a actuação de Paulo Flores e a sua imensa banda – com músicos portugueses, brasileiros, moçambicanos, angolanos, e de outros cantos da lusofonia – na sala principal. Já ligeiramente desfalcada e reduzida a cerca de metade das pessoas que tinham assistido a Mayra Andrade – também pelo adiantado da hora – o concerto foi crescendo de intensidade ao longo da sua duração e primou pela cristalina qualidade de som de cada instrumento, perceptível na mistura. Que noite bonita foi esta primeira do Nossa Lisboa. O espectáculo seguiria no dia seguinte, para mais um mergulho nesta Lisboa crioula que temos a sorte e o privilégio de habitar.