Nuno Belchior: “Estamos a definir uma Política Agrícola Comum que está a destruir tudo”
O que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de media independente, progressista e dissidente e foi originalmente publicado em www.fumaca.pt.
Estava calor, muito calor. Um daqueles dias sufocantes de verão, antes de ser verão, que vão tornar-se banais nos próximos anos. Apetecia estar numa esplanada a jogar conversa fora em boa companhia e com uma bebida fresca. E isso aconteceu, mas demorou. Estávamos mesmo em frente ao Teatro Garcia de Resende, em Évora, no sábado, dia 1 de Junho. Entre o Salão Nobre e a rua demoram-se dois minutos. Só que Nuno Belchior, agricultor, e Tito Rosa, engenheiro agrónomo, precisaram de quase uma hora até se conseguirem sentar depois de ter terminado o debate “Quem ganha com a PAC – Política Agrícola Comum?”, que o Fumaça organizou na última edição de 2019 do Festival Política. Conversaram apaixonadamente, discordando muitas vezes, concordando outras tantas.
Duas pessoas com percursos de vida tão diferentes têm, necessariamente, visões díspares de algo muito concreto: a produção de alimento e a subsidiação dos agricultores. Nuno Belchior é um agricultor e ativista que utiliza a permacultura como sistema de produção agrícola e filosofia nas relações humanas e com o Planeta. Criou o Projeto 270, uma associação sem fins lucrativos que defende e aplica os princípios da soberania alimentar, da agroecologia e da aprendizagem integral. Inicialmente desenvolvido na Costa da Caparica, em Almada, hoje sua a atividade tem sobretudo lugar em Palmela, na Quinta do Bell, onde se produz alimento em modo biológico.
Já Tito Rosa é engenheiro agrónomo, quadro aposentado do Ministério da Agricultura. Entre outras funções, geriu o Programa Operacional Agricultura e Desenvolvimento Rural do III Quadro Comunitário de Apoio – Programa AGRO (2000/2010). Presidiu ao Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (2008-2012) e à Liga para a Proteção da Natureza (2014-2018). Foi Adjunto do Secretário de Estado da Alimentação do XII Governo (1994/1995) e chefe de Gabinete do Secretário de Estado da Produção Agro-Alimentar do XII Governo (1995/1997). É atualmente membro do Conselho de Acompanhamento da Revisão da PAC, nomeado pelo Ministério da Agricultura.
A Política Agrícola Comum é mais antiga política da União Europeia (UE) em vigor, criada em 1962, quando ainda só havia seis estrelas na bandeira e o grupo de países se chamava CEE. O seu orçamento para 2014-2020 representa cerca de 38% do orçamento global da UE. O montante total das despesas para este período de sete anos é de 408,31 mil milhões de euros. Todo este dinheiro é repartido em dois grandes blocos, a que chamam pilares: 308,73 mil milhões são destinados ao Primeiro Pilar – pagamentos diretos aos agricultores e apoio a medidas de intervenção no mercado (por exemplo, campanhas de promoção de um determinado alimento ) – e 99,58 mil milhões seguem para o Segundo Pilar, destinado a ações e apoiam o desenvolvimento rural.
Desde 2014 e até ao final de 2020, no âmbito da Política Agrícola Comum , serão investidos mais de 8 mil milhões de euros diretamente no setor agrícola (4,1 mil milhões) e nas zonas rurais portuguesas (4,082 mil milhões). No passado dia 30 abril, em Portugal, tinham sido pagos 936 milhões 059 mil euros a beneficiários da PAC, relativos à campanha de 2018, via diferentes programas e instrumentos, sendo a região do Alentejo a principal beneficiada: com 380 milhões 459 mil (41% do total). Estes dados são do IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas –, o organismo encarregue de executar o pagamento das ajudas diretas aos produtores e de outras políticas da PAC.
Um dos principais argumentos da UE para que se continue a distribuir todo este dinheiro pelos 28 tem que ver com a necessidade de apoiar os agricultores, por serem agentes económicos com uma atividade sujeita a imponderáveis, como o clima. Argumenta-se ainda que o rendimento dos agricultores é cerca de 40% mais baixo em comparação com o rendimento não agrícola, pelo que as ajudas são necessárias.
Mas a verdade é que o último relatório de execução de pagamento diretos, relativo a 2017, divulgado pela Comissão Europeia no início de maio, só vem reforçar aquilo que a reforma da Política Agrícola Comum feita em 2013 já identificava e que agora se volta a confirmar: “20% dos beneficiários recebem 80% do total dos pagamentos diretos”. O argumento para isto acontecer é o de que 20% das maiores explorações agrícolas da UE concentram 82% das terras agrícolas e da produção.
Lá fora, como cá dentro, quem tem mais terra recebe mais. Só que, no final das contas, quem aparenta estar a pagar a conta é o Planeta. A destruição da biodiversidade, da qualidade dos solos e da água raramente são contabilizados no tipo de produção intensiva que a PAC promove. E parece que continuará a promover, se nada se alterar na proposta em discussão para o período 2021-2027.
Um relatório publicado em fevereiro pelo Tribunal de Contas Europeu é claro: “Apesar das ambições da Comissão e dos pedidos de uma PAC mais ecológica, a proposta não reflete um aumento claro da ambição ambiental e climática. Reconhecemos que a proposta inclui ferramentas que abordam objetivos ambientais e climáticos. No entanto, os Estados-Membros seriam responsáveis por dar prioridade aos tipos de intervenções a financiar nos seus planos estratégicos da PAC. Não é claro como a Comissão iria verificar esses planos para garantir a ambição ambiental e climática. A estimativa da Comissão da contribuição das PAC para as metas da UE relacionadas parece irrealista.”