O 2.º dia do Motelx foi interessante e com 5 filmes de qualidade

por Comunidade Cultura e Arte,    7 Setembro, 2018
O 2.º dia do Motelx foi interessante e com 5 filmes de qualidade
Nicolas Cage

Após uma abertura que deixou algo a desejar com “The Nun”, o segundo dia do Motelx 2018 foi surpreendentemente interessante, com 5 ofertas variadas de grande qualidade, duas delas bem sonantes. Não houve nenhum mau filme, mas também não se pode dizer que “Mandy” tenha sido a obra-prima que muitos apregoam. “Cam” surpreendeu pela positiva, “Unsane” de Soderbergh é uma bela experiência, e “Tokoloshe” por culpa própria não consegue ser o grande filme do dia.

“Mandy” (crítica de David Bernardino)

Era o prato forte deste segundo dia de Motelx. “Mandy”, a trip alucinatória movida a lsd de Panos Cosmatos, protagonizada por Nicolas Cage, não é exactamente aquilo que aparenta, mas é precisamente nessa indecisão quanto à forma que acaba por perder a sua força. Aquilo que aparentava ser um revenge movie ao estilo grindhouse, com Nic Cage a regressar ao território onde o seu carisma melhor dá cartas, é afinal uma obra cinematográfica de experimentalismo formal e estético, relembrando, pelas piores razões, detritos abjectos como “Spring Breakers” ou algum do pior cinema de Nicolas Winding Refn.

Cage vive com a sua companheira, a titular Mandy, numa casa algures nas montanhas do interior dos Estados Unidos, quando um culto religioso decide perturbar a sua idílica vida romântica, soltando a fúria do protagonista. O problema é que na tela o desenvolvimento da trama não funciona exactamente assim, com um ritmo lento e pantanoso, coberto de filtros de cor neo noir, dando mais protagonismo ao culto vilão e à irritante Mandy que propriamente à acção e loucura de Cage, cujo tempo de ecrã é na verdade reduzido. É impossível fugir ao pensamento de que “Mandy” é, afinal de contas, um filme artisticamente pretensioso que não sabe o que fazer com aquele que é, de longe, o seu maior trunfo, e pior, conscientemente coloca-o em segundo plano, preferindo os devaneios estéticos e diálogos filosófico-balofos do pastor do culto à vingança propriamente dita que o filme teima em insinuar e prometer, mas que acaba por entregar de forma insuficiente e titubeante. Por outro lado é inegável o mérito estético que o filme apresenta. A sua criatividade, embora gratuita e inconsequente, compõe belos planos imagéticos. É também inegável que das poucas vezes que temos o prazer de ver Nicolas Cage a trabalhar o veterano actor protagoniza cenas poderosas com uma maravilhosa entrega. Fica um sabor agridoce. Dependerá da disposição do espectador e do seu gosto pessoal, mas “Mandy” enquanto conjunto será objectivamente um filme desequilibrado e com um rumo incerto que, isoladamente, tem o mérito de apresentar sequências visuais e de acção com o potencial de atingir o culto cinematográfico.

“Unsane” (crítica de Sandro Cantante)

Após uma pausa nas longas-metragens, Steven Soderbergh regressou o ano passado com “Logan Lucky” e ganhou a atenção em vários festivais de cinema neste ano com “Unsane”, um filme filmado exclusivamente através de um iPhone. Os planos mais cerrados das personagens nunca nos deixam esquecer deste facto e ajudam a aumentar a proximidade com as mesmas, à medida que Sawyer, muito bem interpretada por Claire Foy, parece enlouquecer. O ambiente criado por Soderbergh num hospital psiquiátrico onde tudo parece estar contra a protagonista funciona na perfeição, mas o argumento apresenta graves falhas que não permitem que “Unsane” vá além de alguns conceitos interessantes.

A imprevisibilidade, que Soderbergh conseguiu em filmes como “Side Effects” e que é essencial para preencher este género de narrativa, está aqui em falta desde muito cedo. Não deixa também de ser estranho que um filme que pretende focar-se tanto em relações humanas contenha algumas interacções que nada têm de humano, mostrando aquilo que poderia ser definido como uma espécie de interpretação das emoções humanas realizada por inteligência artificial. À medida que caminhamos para o final, há muito anunciado, o pico de interesse pelo argumento já ficou muito para trás e a fraca conclusão não ajuda a deixar um sabor agradável da interessante experiência realizada por Steven Soderbergh.

“Cam” (crítica de David Bernardino)

Certamente um dos filmes mais originais a passar neste Motelx, Cam, realizado por Daniel Goldhaber,  entra no mundo das camgirls que se exibem em chat rooms online em directo a troco de dinheiro dos seus visualizadores. Madeline Brewer faz um bom papel como modelo que subitamente vê a sua identidade misteriosamente roubada online e duplicada numa chat room de uma forma asfixiantemente misteriosa. Procurando resolver o mistério, “Cam” joga com as paranóias, medos e incertezas de um desconhecido mundo online, e o roubo de identidade num meio tão estranho e potencialmente perigoso, mas com uns bastidores rotineiros e estranhamente familiares, desmistificando ao mesmo tempo o mundo familiar e profissional destas modelos. Ainda que não se consiga desligar de uma certa atmosfera cool juvenil, “Cam” é um thriller belíssimo e original que pisca o olho ao revivalismo neo noir que tem aparecido nos últimos anos no cinema norte-americano.

“The Tokoloshe” (Crítica de David Bernardino)

Raro exemplo de cinema africano de terror que chega a uma sala portuguesa, Tokoloshe várias vezes morde os calcanhares daquilo que seria um grande filme. Busi é uma jovem que se vê forçada a abandonar a província Sul Africana para trabalhar na metrópole de Joanesburgo enquanto empregada de limpeza num hospital degradado para assim salvar a sua irmã mais nova que ficou para trás. Os fantasmas de abusos sofridos ao longo da sua infância são sugeridos nos pesadelos da protagonista à medida que os vê ressuscitar perante a entidade vil que é o seu patrão sem escrúpulos.

Quando se apercebe de que existem histórias de um demónio que assombra as crianças no hospital, Busi tem dificuldade em separar os seus demónios da realidade. Com temáticas bem actuais como os abusos sexuais, a desigualdade de género e os traumas culturais, mas longe de querer alimentar lições moralistas à boca do espectador com uma colher, Tokoloshe faz um trabalho quase brilhante, com um argumento sólido e uma cinematografia deliciosa, sempre com uma atmosfera misteriosa e perturbadora que agarra o espectador. A parte mais interessante, mas ao mesmo tempo mais frágil do filme, é o seu último terço, desenrolado no desolador cenário campestre africano da sua infância, no qual Busi terá de enfrentar os seus fantasmas familiares.“Mon Mon Mon Monsters” (Crítica de David Bernardino)

Filme de Taiwan de belo efeito, “Mon Mon Mon Monsters” consegue adjectivar, com muitas hipérboles e metáforas, os fantasmas de alguma cultura violenta juvenil, nomeadamente o bullying, os abusos perante idosos ou a pressão social, que muitas vezes parte do próprio corpo docente nas escolas. Aqui, uma traumatizada vítima de bullying é forçada a cumprir castigo com os seus bullies ajudando idosos num prédio degradado. É aí que encontrarão duas criaturas demoníacas, capturando uma delas e colocando-a num cativeiro escondido para satisfazer todos os seus desejos de tortura e abuso de dignidade, à medida que a outra criatura a tenta encontrar, não parando perante nada.

“Mon Mon Mon Monsters” consegue repulsar o espectador perante a desvalorização da vida humana e… desumana, questionando, ainda que com muito estilo e exagero digno de algum cinema asiático, quem serão afinal os verdadeiros monstros. Pena que à medida que caminha para o seu final, o filme se perca um pouco no seu labirinto moral, terminando com um epílogo algo desconexo que quase deita a perder aquilo que de bom construiu até então.

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