O advento do Afro-Surrealismo no audiovisual
Em 1974, o poeta e crítico musical Amir Baraka recorreu à expressão “expressionismo afro-surrealista” para descrever a obra do escritor norte-americano Henry Dumas. O termo passou, posteriormente, a ser conhecido somente por “afro-surrealismo” para designar uma estética literária, artística e cultural.
Inaugurado por D.S. Miller como uma nova abordagem estética ao realismo contemporâneo, o afro-surrealismo, a par com o afro-futurismo, tornou-se um precioso mecanismo de representação artística, que aborda circunstâncias absurdas a que as comunidades afro-americana, ásio-americana, latina, feminina ou queer se encontram, frequentemente, sujeitas.
Atualmente, é possível verificar nuances da expressão afro-surrealista em pinturas, fotografias, videoclipes, filmes, literatura e poesia.
Afro-surreal
O surrealismo é um dos movimentos artísticos mais célebres do séc. XX. Iniciou-se como movimento literário em 1910 e foi, mais tarde, legitimado pelo escritor e poeta André Breton. Em 1924, inspirado pelo trabalho de Sigmund Freud e pelas tradições da ideologia Marxista, Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, um documento no qual constam os principais desígnios dos artistas do movimento na Europa. Neste texto, o autor francês define o surrealismo como um automatismo da psique que permite compreender, através da expressão artística, realidades pessoais e civilizacionais.
Com o alcance do manifesto, muitos poetas e escritores mostraram-se relutantes em alinhar-se com os artistas visuais, no entanto, como sabemos atualmente, a expressão artística do movimento tornou-se realmente valorizada através das pinceladas atípicas de artistas como Salvador Dali, René Magritte, Max Ernst e Frida Kahlo.
O termo “Afro-Surreal” surgiu em 1974 através do trabalho de Amir Baraka, num artigo intitulado “Henry Dumas: Afro-Surreal Expressionist”. O autor encontrou, nas obras de Dumas, a capacidade de criar uns mundos semelhantes ao que conhecemos, porém, enquadrados num plano existencial completamente distinto do vulgar, de forma a manifestar um tipo de crítica social. Baraka descreve o trabalho de Dumas como um espaço repleto de fábulas, mitologia e imagens oníricas, onde podemos encontrar um sentimento de estranheza e, palavras do autor, “um terror ambíguo”.
Ainda que muitos dos princípios do surrealismo se manifestem na estética afro-surrealista, os movimentos diferem em inúmeros aspetos, tanto na forma, como no conteúdo. Nas palavras de Leopold Senghor, ex-presidente do senegalense, poeta, afro-surrealista e precursor do conceito de negritude: “O surrealismo europeu é empírico. O afro-surrealismo é místico e metafórico”.
Em 2009, D. Scot Miller escreveu o Manifesto Afro-surrealista, no qual expressa a necessidade de emancipação do movimento e apela a que a cidade norte-americana de São Francisco se torne um marco geográfico que permita a disseminação desta nova estética. Miller interpreta o afro-surrealismo como uma revisitação do passado através de uma ótica atual que distorce a realidade com o intuito de provocar um impacto emocional.
À semelhança de Breton, com o “Manifesto Surrealista”, também D.S. Miller procura politizar o movimento artístico e revisitar as reivindicações marxistas, apelando à pertinência e às repercussões que o movimento pode vir a ter em causas sociais ou questões de identidade cultural. Para o autor, o afro-surrealismo apela à libertação das convenções e preconceitos raciais e étnicos através da diversidade de paradigmas culturais.
Inspirado por muitos aspetos da Harlem Renaissance e da Negritude, um paradigma de crítica e teoria literária que motivou movimentos como “black is beautifull”, o afro-surrealismo torna-se parte integrante do “Black Speculative Arts Movement”. O BSAM (sigla do movimento) procura abranger uma vasta rede de artistas, criativos e intelectuais que se enquadrem ou abordem aspetos de movimentos artísticos como o afro-surrealismo, afro-futurismo ou realismo mágico para interpretar aspetos do passado, avaliar e contestar questões do presente e catalisar diferentes configurações para futuro. Desta forma, o movimento surge como um eco do “Black Arts Movement” (BAM), integrado pelo já referido precursor do afro-surrealismo, Amiri Baraka.
Em Portugal surgiu, igualmente, um movimento em defesa dos interesses da negritude na cultura. A “União Negra das Artes” (UNA) oficializou-se em Abril de 2021, com o intuído de dar a conhecer e defender os interesses e representatividade de artistas negros em diferentes áreas da cultura em Portugal e combater as profundas assimetrias que abalam o setor.
Afro-futurismo
O afro-futurismo integra a diáspora africana e constitui um movimento artístico que procura espelhar as grandes disparidades sociais e o absurdo quotidiano atual de inúmeras comunidades sub-representadas através da ficção científica e da estética futurista, enquanto recorre, por vezes, à especulação de um futuro utópico.
A designação “afro-futurismo” surgiu em 1993 através da obra “Flame Wars: The Discourse of Cyberculture”, num ensaio de Mark Dery intitulado “Black to The Future”. No seu texto, Dery disserta sobre como o género afro-futurista pretende reivindicar um passado histórico e reconfigurar o discurso e as narrativas de futuro através de elementos sci-fi, tecnológicos, científicos, mitológicos e futuristas.
As pinturas de Jean-Michael Basquiat constituem algumas das contribuições mais pertinentes para o movimento afro-futurista. Inspirado pelo jazz nova-iorquino dos anos setenta, o trabalho deste pintor neoexpressionista aborda temáticas como a escravatura, o racismo, a segregação e o quotidiano novaiorquino através da justaposição de elementos graffiti, figuras e iconografia cubista, máscaras africanas e tipografia desenfreada. A excelência das obras de Basquiat impulsionou o advento do afro-futurismo nas artes visuais e a sua influência inspira milhares de projetos criativos contemporâneos.
No cinema e no audiovisual, é possível verificar manifestações da estética e das temáticas afro-futuristas em obras cinematográficas como “Afronauts” (2014), considerado um precursor de “Black Panther” (2018), da Marvel Studios, na série “Lovecraft Country”, criada por Misha Green e produzida por J.J. Abrams, mas também em videoclipes, como “Humble”, “Alright” e “N95”, do rapper Kendrick Lamar.
A Expressão Afro-Surrealista no Audiovisual
Em oposição ao afro-futurismo, o movimento afro-surrealista propõe, segundo Miller, uma representação do presente, “aqui e agora”. Não obstante, comunicar um significado atual através da expressão artística surrealista é um exercício complexo e delicado, que exige uma apreciação crítica e analítica da atualidade, requer um profundo entendimento dos elementos caracterizadores do movimento e uma valorização dos aspetos distintos de uma identidade cultural. Este processo implica, frequentemente, o recurso a simbologias e iconografia para convocar determinadas referências que compõem a crítica social.
Na música, à semelhança de Kendrick Lamar, também Donald Glover, conhecido por Childish Gambino, tem vindo a servir-se das particularidades estéticas do afro-surrealismo nos seus videoclipes e a recorrer a elementos surreais para fortalecer a carga simbólica dos seus vídeos.
O clipe da música “This is America” integra uma vasta dimensão de referências que ilustram alguns dos aspetos mais delicados da identidade cultural afro-americana através de um cenário surreal e de um jogo coreográfico absurdo, alusivo às poses de “Jump Jim Crow”, uma dança popular de conotações e insinuações raciais altamente retrógradas e pejorativas. Com isto, Glover pretende desconstruir estereótipos e preconceitos associados às comunidades afro-americanas no contexto estadunidense e apontar o dedo à cultura popular norte-americana, que continua a entreter o espectador enquanto o caos e a desordem abduzem o segundo plano.
O realizador e diretor de fotografia Arthur Jafa é um dos primeiros artistas audiovisuais a justapor elementos afro-surrealistas no seus filmes e instalações artísticas. Jafa pretende que o seu reportório cinematográfico replique as emoções, o poder e a beleza que a música negra transmite. Os seus projetos são disruptivos e desafiam estereótipos, estéticas e paradigmas culturais, enquanto abordam a função determinante da raça, género e classe social na cultura popular.
No cinema comercial contemporâneo, o afro-surrealismo marca presença em filmes como “Sorry To Bother You” (2018), “Afronauts” (2014) ou ainda nas obras do realizador e argumentista Jordan Peele, “Us” (2019)e “Get Out” (2017).
O Afro-surrealismo de “Atlanta” e “Get Out“
Em 2016, Donald Glover revisita o afro-surrealismo com a série “Atlanta”, que o criador garante estar ao nível do original HBO, “The Sopranos” (2007). Ainda que possa parecer uma opinião constatável, a realidade é que, do ponto de vista cinematográfico, “Atlanta” aproxima-se do arquétipo de perfeição.
A direção de fotografia é sublime, os enquadramentos e os movimentos de câmara, pensados com rigor e executados com destreza, acompanham um trabalho notável de encenação e décor, a montagem pauta o ritmo da estória, que, por si só, está prodigiosamente orquestrada no argumento. As temáticas são audazes e, tal como no trabalho de Henry Dumas, manifestações da identidade cultural afro-americana através do que Dumas define como “morality tales”.
A série recorre ao surrealismo para, à semelhança do seu predecessor “Twin Peaks” (1990), de David Lynch, enaltecer e representar um local de estranheza, onde as próprias personagens se encontram conscientes do contexto absurdo do seu universo.
Em “Atlanta”, os traços da estética afro-surrealista são evidentes, porém, no que concerne ao enredo, apenas podemos especular uma influência do movimento. Sendo que os próprios argumentistas da série, numa entrevista ao The Guardian, confessam não optar voluntariamente pela expressão surrealista. Os autores acabam por representar a realidade de uma forma surreal, pois, à semelhança de Frida Kahlo, citada na frase que introduz o “Manifesto Afro-surrealista”, indica: “I’m not a surrealist. I just paint what I see”.
O filme “Get Out”, do realizador Jordan Peele, é considerado uma obra-prima do terror por quebrar e desafiar as convenções atribuídas ao género cinematográfico. Ainda que o trabalho de realização seja exemplar, o verdeiro mérito desta obra de Peele encontra-se no potencial narrativo e temático do enredo.
No decorrer do filme, é possível identificar o “terror ambíguo”, descrito por Baraka na sua análise à obra de Dumas, nomeadamente, através da impertinência dos anfitriões caucasianos de meia-idade e autodesignados de “progressistas”, com uma obsessão perturbadora pela identidade cultural afro-americana. As permanentes reafirmações do chamado “preconceito benevolente” deixam o protagonista constantemente desconfiado e a audiência permanentemente inquieta. Este conflito constitui uma representação pragmática daquilo que o sociólogo W.E.B. Du Bois descreveu como um fenómeno de “dupla consciência” e “véu”. Trata-se de um conflito interno sentido por comunidades segregadas no passado, que se encontram sistematicamente reféns da narrativa e da ótica uma sociedade opressora. Para Du Bois, a raça é uma condição existencial, que incapacita o vislumbre da realidade pessoal, pois cada condição é acompanhada de um “véu” que implica uma consequente distinção de vivências.
Em “Get Out”, a temática da “dupla consciência” é reforçada através de uma mimese surreal do processo de hipnotismo, quando o protagonista se encontra no “sunken place”, um local da mente inconsciente, que incapacita o movimento do corpo e aprisiona a consciência num lugar profundo e obscuro.
Desta forma, podemos recordar os desígnios do “Manifesto Surrealista”, de Breton para redescobrir aquilo que é, possivelmente, um dos princípios mais pertinentes do enquadramento surrealista nas artes. Quando o contexto e os estímulos externos se tornam absurdos e surreais, o surrealismo deixa de representar uma mera manifestação do inconsciente humano. As imagens bizarras, as paisagens oníricas e os lugares de estranheza passam expor uma realidade alegórica através de uma natureza profundamente introspetiva e de um local intrínseco de inquietude. A partir do “Manifesto Afro-surrealista”, podemos descrever o trabalho de Peele pela mesma ordem que Jean-Paul Sartre descreveu a obra afro-surrealista e o trabalho de Senghor: “[it] is revolutionary because it is surrealist, but itself is surrealist because it is black”.
Ainda que o trailer não revele mais que algumas especulações temáticas, o mais recente projeto de Peele, “NOPE” (2022), promete revisitar a estética afro-surrealista e oferecer, novamente, uma experiência cinematográfica singular no universo do terror.