O bailado da obra de Tchaikovsky
Pyotr Tchaikovsky é um nome emblemático no discurso musical que o mundo viu ser feito e composto. Entre sinfonias, concertos, óperas e bailados, partiu da Rússia para uma fama que atravessou os dois hemisférios e os lados opostos do Pacífico, alcançando os Estados Unidos com uma confiança e uma abertura pouco habituais. Traduziu a identidade russa como poucos, embora não fizesse parte do célebre Grupo dos Cinco, que tanto se tornou reputado na composição musical do país. Vivas as melodias e requintadas as harmonias, uniu a Rússia ao mundo e fê-la mais íntima de todas as necessidades e confidencialidades da música universal.
As composições
Pyotr Ilyich Tchaikovsky construiu o seu legado em solo russo, embora alcançasse o mundo com a voracidade de uma musicalidade intensa e imensa. Os seus trabalhos mais importantes divergem na tipologia. Entre bailados e sinfonias, também óperas vêm à baila no discurso musical do russo. A adaptação musical de “Romeu e Julieta” (versão final de 1886) e a imponente “1812 Overture” (1882), escrita como celebração da vitória da pátria russa perante a invasão napoleónica são os aperitivos de um cardápio musical de grande elevação. “O Lago dos Cisnes” (1876) é o primeiro dos três bailados de grande porte que Tchaikovsky compõe, trazendo uma princesa que é transformada num cisne por uma feiticeira de má índole, mas que é recetora dos sentimentos de amor de um príncipe, numa história inspirada no folclore germânico e russo. “A Bela Adormecida” (1889) é a que se segue, adaptada do conto do francês Charles Perrault; chegando ao “Quebra-Nozes” (1892) depois de voltar a beber da literatura gaulesa, desta feita de Alexandre Dumas, por intermédio do autor prussiano E.T.A. Hoffman. O quebra-nozes protagonista é transformado num príncipe, vivendo uma fase de encanto e de paixão ao som de uma narrativa que se cinge ao sonho.
A “Marcha Eslava” (1876) inspira-se no apoio russo à Sérvia, isto num período em que escalava a Guerra Sérvio-Turca, enunciando o folclore sérvio e a opressão sofrida por estes perante os otomanos. Para além dos três movimentos do “Concerto para Violino e Orquestra” (1878), Tchaikovsky regressa às adaptações literárias, agora com o autor russo Alexander Pushkin, e traz “A Dama de Espadas” (1890, contando a tentativa de alcançar a essa mulher move um homem que deseja ganhar jogos, correndo riscos desmesurados) e “Eugene Onegin” (1879, um número de ópera lírica embrenhado no dramatismo de um jovem rejeitado por uma rapariga e no desejo de confrontar o amado desta, o melhor amigo do protagonista). Outras composições de relevo são “Sinfonia Manfredo” (1885, trazendo o poema homónimo de Lord Byron para a composição musical, sendo a única sinfonia que é composta por mais do que um movimento no repertório de Tchaikovsky), “Francesca da Rimini” (1877, com o conto trágico de Francesca da Rimini, divinizada n’”A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e apaixonada pelo irmão do seu tirano marido), “Capriccio Italiano” (1880, uma composição musical essencialmente livre e improvisada) e “Serenata para Cordas” (1880, num estilo similar a Mozart, numa pequena sonata).
O estilo de composição
A expressão estilística do russo sempre se destacou dos demais compositores, muito por via da emoção que conseguia introduzir e extrair do que compunha. Tinha o dom de introduzir uma racionalidade incomum para o exercício musical, mas também o engenho de o aprofundar no campo das emoções, à boa maneira artística. “Variações num Tema Rococó” (1877) transporta esse fervor emotivo do seu compositor predileto, Mozart; enquanto “Sinfonia nº 2 em C menor” (1872, compondo sobre o folclore ucraniano e, por isso, sobre a “Pequena Rússia”) e a ópera “Vakula, o Ferreiro” (1876, influenciada pelo conto “Véspera de Natal”, de Nikolai Gogol) são mais íntimas do Grupo dos Cinco, voltando o seu ponto de gravidade para o que se passava no seu país. Ainda sobre a Ucrânia, dedicou-lhe mais algumas atenções, tanto na sua experiência de vida, como no próprio trabalho que foi desenvolvendo. Foi aqui que redigiu “A Tempestade”, o seu primeiro trabalho de orquestra, no ano de 1864, enquanto passava férias; para além de ter fundado o Conservatório de Kiev, sendo lá maestro, assim como em Odessa e Kharkiv.
No que toca aos aspetos musicais, o leque variado de melodias de Tchaikovsky permitiu reforçar a sua distinção em relação aos demais compositores, mais nacionalistas e menos recetivos às influências de Ocidente. Separou-se, desta forma, da repetição e da unidireção dos seus compatriotas, procurando os contrastes e, de certa maneira, imitar os grandes compositores, como Mozart ou Ludvig van Beethoven, à procura da tensão e do interesse de quem ouvia as suas peças. No que concerne a harmonia, sempre se sentiu aliciado pela mudança de tonalidades que a modelação da composição ocidental ressoava. Assim, com o seu talento, conseguia articular um padrão de harmonias que conseguia o contraste tão procurado no seu trabalho. Também no ritmo, experimentava regularmente elementos usuais, procurando manter a mística da dança, mas sem descartar o folclore russo, na medida em que estimulava a progressão em movimentos de grande escala.
Em termos estruturais, com dificuldades em usar a sonata, cingiu-se às justaposições e às alternações periódicas, sem criar grandes ruturas. No entanto, procurou introduzir blocos de tonalidades distintas e temas sobrepostos, de forma a criar os vigorosos contrastes que lhe são caraterísticos. A sua expressão começou a aumentar em intensidade com um desenvolvimento cada vez mais livre, procurando ligar-se à experiência quotidiana através do drama a que ia dando notas. A relação entre o recetor e a peça musical era o elemento no qual Tchaikovsky mais trabalhava, tentando encontrar as tensões psicológicas e emocionais que mexessem com quem usufrui da música.
Um elemento sintático também importante é o uso das sequências compostas por melodias que, num tom mais ou menos alto, se estendem por um amplo período de tempo. Essas repetições serviam para gerir a própria melodia, o seu ritmo, a tonalidade e a cor sonora, aumentando a tensão musical até a uma experiência emocional de intensidade reforçada. Ao nível da orquestração, recorria a esta para ornamentar as suas composições com efeitos musicais, num leque variado de timbres que eram produzidos por combinações inusitadas de instrumentos.
As influências passadas e futuras
As composições de Tchaikovsky também denotam a presença do pastiche, isto é, de uma recuperação de obras passadas, entre a imitação e a evocação de algumas das peças conhecidas. Entre estas, várias compostas no período Rococó, imbuídas na elegância da tradicional corte francesa, que conduzia os bailados para uma espécie de refúgio num mundo de fantasia. Nomes que se denotam nas influências do seu percurso musical são os alemães Robert Schumann e Richard Wagner, o húngaro Franz Liszt (estes dois no estilo de orquestração), o francês Jules Massenet (num percurso romantista, de redescoberta da própria obra de Johann Sebastian Bach), o também gaulês Georges Bizet e a incontornável referência de Mozart, a sua grande referência. Deste grupo heterogéneo de artistas, herdou o valor atribuído à estética musical, de forma a gerar uma experiência profunda nos seus ouvintes. Também o uso de referências temáticas, como a valorização da pátria russa, solidificaram uma procura assídua pelo agrado de quem o ouve, sintonizando-se com a aristocracia e com a dinasta Romanov, que liderava o país. Para além de usar com regularidade a polonesa, uma dança local da Polónia, nas suas composições, inspirava-se nos valores transmitidos por essas classes sociais, de forma a reunir as boas graças dos seus conterrâneos.
Para isso, contou com o contributo de vários colaboradores, como o músico e pedagogo Leopold Auer e o bailarino Marius Petipa, a quem procurava agradar no compromisso que estabelecia com os dançarinos das suas peças musicais. Minimizando os detalhes e as subtilezas, não se comprimia na altura de dar amplitude musical e artística às suas melodias e às orquestrações que orientava os vários conjuntos de intervenientes. No lado oposto, recebia o ceticismo e a crítica de vários condutores musicais, que o acusavam de não ser nacionalista o suficiente e de ser indeterminado na sua expressão musical, para além de violento e histérico, que colocava em risco a apreciação da estética convencional da música de então. Isto opunha-se às qualidades de emocionante e de eloquente que outros tantos lhe apontavam, à boa imagem da composição musical ocidental, procurando envolver o público. O seu sentido de variabilidade, envolvido pela flexibilidade musical que procurava incutir, encontrava-se com a literatura mais profunda e sensorial para produzir peças de relevo num repertório crescente aos olhos do exterior.
A sua influência futura alcança uma fama que não é igualável por muitos dos compositores do milénio, resultado de um profundo trabalho entre a harmonia, a orquestração e, advindo destas, um conjunto de melodias moldáveis às várias gerações que se sucederam. Tratando-se do principal compositor musical de nacionalidade russa, a fusão do Ocidente com o folclore russo permitiu torná-lo numa referência única, separada de quem se havia associado somente à causa nacionalista, ou até só à imitação de quem compunha a oeste. A aproximação da Rússia à Europa deu-se em muito pela contribuição cultural de Tchaikovsky, o que, por sua vez, aproximou a música que compôs das referências atuais dos dois lados do Atlântico.
Pyotr Tchaikovsky surge, desta feita, como um marco na composição musical, como um suspiro profundo na arte de criar impactos e vislumbres de deslumbrantes momentos. Dedicando o que criava aos que o ouviam, o russo sintonizou-se com a paixão pela música feita na Europa Central com a causa e valores do seu país, numa passagem única da história das melodias e das suas harmonias. Deste lastro, subsiste uma profunda estima em cima do palco, tanto no passo concertado de um bailado, como na orquestra mais orientada para um caminho bem embalado.