O Bons Sons mostra-nos que há muito mais que nos une do que o que nos separa

por Linda Formiga,    13 Agosto, 2019
O Bons Sons mostra-nos que há muito mais que nos une do que o que nos separa
Pedro Mafama – Fotografia de Linda Formiga / CCA
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O Bons Sons é, como já todos sabemos, um projecto de co-existência, de colaboração e de acção social. Esta co-existência – e falo em co-existência na sequência do espectáculo de dança Coexistimos, de Inês Campos, que ocupou o Auditório Agostinho da Silva – cria um ambiente único, composto por pessoas de todas as idades que fazem de Cem Soldos casa durante 4 dias, quer estejam sozinhas, com amigos, com os filhos ou com os animais de estimação. Ao final de um dia, já conhecemos uma mão cheia de pessoas novas, já conhecemos os recantos, já sabemos de cor o nome dos burros mirandeses da AEPGA.

Este ano, e pela 10.ª vez, a aldeia de Cem Soldos abriu os braços e os caminhos aos mais eclécticos projectos musicais, a contos populares, a poesia, a jogos tradicionais, a passeios, a debates e, este ano, a residências artísticas. Pelo meio, tivemos concertos surpresa em garagens, o fantástico mural de Mariana a Miserável, entre flores de papel e vinho a copo, e os Fumaça promoveram debates sobre a interioridade e a cultura.

Foi no seguimento do espírito colaborativo que permeia todo o festival que tivemos este ano as colaborações de Benjamim e Joana Espadinha logo no primeiro dia, e os dias seguintes foram sendo pontuados pelas colaborações de Lodo e Peixe, First Breath after Coma + Noiserv, Glockenwise + JP Simões, Sopa de Pedra + Joana Gama e Sensible Soccers + Tiago Sami Pereira. Estas colaborações permitiram que o Bons Sons fosse palco de concertos únicos, marcados pela colaboração entre os artistas que foram tocando temas do reportório de cada um, por vezes saindo substancialmente da zona de conforto de cada um, como foi o caso de Noiserv, que de one-man band passou para um colectivo de 6 elementos. Não sabemos se vamos ter criações a partir destas colaborações fomentadas pelo Bons Sons, mas agradecíamos.

Se as colaborações nos surpreenderam, as actuações de bandas emergentes ou com muitos anos de história não ficaram atrás.

Diabo na Cruz – Fotografia de Linda Formiga/CCA

A voz incrível de Raquel Ralha recebeu muitos festivaleiros com Pedro Renato, a Orquestra Sinfónica Gafanhense prestou homenagem a Zeca Afonso, mas o primeiro dia do festival ficou marcado pelo concerto efusivo dos Fogo Fogo, num cruzamento quase-perfeito de todas as sonoridades africanas e a marcar um dos muitos momentos em que o funaná foi rei neste festival. Os já experientes X-Wife mostraram que ainda não perderam o jeito e trouxeram Nova Iorque de 2005 para Cem Soldos, e, por fim, justificando as centenas de t-shirts vestidas neste primeiro dia, tivemos o concerto a roçar o mítico dos Diabo na Cruz. É certo que não temos o Cruz, mas a gratidão pela obra feita e homenageada pelos restantes elementos da banda deram-nos um concerto mítico, emotivo, com direito a crowdsurfing e dias a fio sem voz por se ter cantado todas as canções, de fio a pavio.

Helder Moutinho – Fotografia de Linda Formiga /CCA

Helder Moutinho parecia a aposta arriscada do segundo dia do festival. Tínhamos começado com Afonso Cabral, que é como quem diz aquele moço que é vocalista da banda You Can’t Win Charlie Brown, que agora se lança a solo e que vai dar que falar, tínhamos passado pelos Lodo com o Peixe e fizemos duas ou três promessas para se juntarem num estúdio, quando demos por nós no palco Lopes-Graça para ouvirmos Helder Moutinho a prestar a mais bela homenagem ao fado tradicional. Pelo meio, uma versão de “Nunca parto inteiramente”, tema original dos Ala dos Namorados e interpretada também por Manel Cruz e um respeito imenso do público naquele que terá sido seguramente um dos concertos mais bonitos de todas as edições do Bons Sons. O dia haveria de terminar com Maria João e Budda Power Blues e com o frenesim de Scúru Fitchádu.

Pop Dell’Arte – Fotografia de Linda Formiga / CCA

Se o segundo dia tinha sido mais calmo e mais “instrumental” com os FBAC ou os Lodo, o terceiro dia foi começando com Rezas, Benzeduras e Outras Cantigas no palco “Música Portuguesa a Gostar dela própria”, com o duo baixo-guitarra dos Baleia Baleia Baleia (que vai já para a lista das bandas a seguir!) e o magnífico projecto Miramar, que une Peixe e Frankie Chávez. O resto da noite foi marcada por bandas históricas, com os Pop Dell’Arte a mostrarem-nos que “o amor continua a ser um gajo estranho” na voz perfeita de João Peste, ora radiofónica, ora distorcida, ora enrolada, ora nítida, sem quaisquer artefactos. Quem voltou para nós, e ainda bem, foram os Três Tristes Tigres, que se preparam para lançar novas músicas. Já tínhamos muitas saudades da voz de Ana Deus, ficámos com pena de não ouvir alguns dos “hits”, mas estamos expectantes sobre o que vem por aí. Stereossauro com fado e Tiago Bettencourt com o seu pop-rock tomaram bem conta do palco Lopes-Graça, terminando o segundo dia com Glockenwise + JP Simões numa colaboração sui generis.

Três Tristes Tigres – Fotografia de Linda Formiga / CCA

O último dia da 10.ª edição do Bons Sons começou com as Vozes Tradicionais Femininas, passou pelo Galo Cant’às Duas e viu a sua primeira enchente do dia por volta das 17h30, para verificarmos que vamos ouvir falar muito de Pedro Mafama nos próximos tempos. Por ora, só temos o EP ‘Má Fama’ e o single ‘Lacrau’, em breve teremos o crescimento do culto que já o acompanha. Passámos pelo Ricardo Toscano com o João Paulo Esteves da Silva numa união-mais-que-perfeita de saxofone e piano; passámos pela doçura de Luísa Sobral, com as suas mil estórias de embalar e de alguma melancolia; pelas guitarras de Júlio Pereira; pelo pop-rock dos Tape Junk (mais um projecto para acompanhar a todo o custo) e terminamos acampados em frente ao Lopes-Graça para vermos Dino D’Santiago.

Dino D’Santiago – Fotografia de Linda Formiga / CCA

Dino de Santiago, de Cabo Verde, da ilha de Santiago, de Quarteira (e não da Quarteira), de Lisboa e do mundo inteiro. É impossível ficarmos indiferentes ao talento de Dino e é impossível, independentemente de quão calcificada está a nossa anca, não querer saltar e dançar a ouvir o funaná de Dino. Se com Helder Moutinho nos enchemos de melancolia e da nostalgia, a música de Dino D’Santiago faz-nos bem à alma, enche-a de alegria, emoção e união.

Terminámos com os Sensible Soccers com o Tiago Sami Pereira e, por fim, Moullinex colocou um ponto final na 10.ª edição, com surpresas e colaborações, mais uma vez (Dino D’Santiago foi um dos artistas que se juntou a Moullinex).

Se a música nos dá até uma outra coragem de enfrentar o mundo, o trabalho desenvolvido por Cem Soldos na realização do Bons Sons mostra-nos que é possível intervir num país cada vez mais centralizado nas grandes cidades no litoral. Mostra-nos o que é a cidadania participativa, mostra-nos o respeito pelos animais e pelo ambiente. Mostra-nos que o envelhecimento activo é o caminho a seguir e que há muito mais que nos une do que o que nos separa.

Para celebrar todas as edições do Bons Sons, e em colaboração com as Edições Escafandro, foi lançado o livro ‘BONS SONS x 10 – Uma Aldeia em Manifesto’ com ilustrações de Ângela Vieira, Joana Ray, Nuno Saraiva, Pedro Brito e Silvia Belli e textos de Rita Nabais, Nuno Matos Valente e João Neves. Aqui podemos encontrar os momentos altos que marcaram a História do festival e da aldeia, à qual vamos querer voltar a qualquer altura do ano.

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