O bromance criativo de Paul Thomas Anderson e Jonny Greenwood
Paul Thomas Anderson (PTA) é, sem dúvida, um dos meus realizadores favoritos desta geração. De todos os seus filmes, escolheria “The Master” para levar comigo para essa ilha imaginária onde não há Internet. Para mim, esta obra é uma síntese em estado puro do que interessa ao realizador: um personagem bastante peculiar que, ao “lutar” por pequenos momentos de felicidade a cada dia, acaba por se confrontar com as suas dificuldades em adaptar-se ao que o rodeia. Essa personagem, de seu nome Freddie Quell, é um veterano naval acabado de regressar aos EUA da Guerra, com graves perturbações mentais. Não é o tipo de pessoa que tenha um plano de vida. A Freddie interessa-lhe tentar pelo menos ser um pouco feliz cada dia. Ele segue o fluxo dos acontecimentos e dos seus desejos. É um personagem à procura de saber o que fazer. Uma série de acontecimentos levam Freddie a conhecer Lancaster Dodd, o Mestre: um homem devoto à “causa”, que aparece como uma aproximação à cientologia, que, pela altura do lançamento do filme, era um tema recorrente de notícias associadas a atores de Hollywood. Este Mestre tinha a necessidade de manipular e controlar, encontrando em Freddie um bom “objeto” de experiência científica para as suas teorias e métodos para curar os seus traumas.
Ainda que o Mestre dê titulo ao filme, o coração da obra está em Freddie, que é um homem com traumas, tiques físicos, dificuldade em controlar-se — chegando a dar chapadas na própria cara — é o tipo de pessoa que, às vezes, demora a entender uma piada e decide rir-se já fora do contexto, é capaz de atirar um tomate a um homem que não conhece numa casa onde acaba de entrar pela primeira vez como convidado, entre muitas outras situações. É uma personagem tão rica, que deu a Joaquin Phoenix o espaço e dificuldade necessária para oferecer ao mundo do cinema a sua melhor versão, à altura da interpretação de “Joker” que lhe valeu recentemente um Óscar.
Personagem cujo único desejo é essa busca contínua por momentos de felicidade todos os dias, Freddie é acompanhado por uma banda sonora magnífica que preenche com sentimentos os frequentes momentos do filme durante os quais Freddie não fala. Esta banda sonora mostra o ritmo, o sentimento dominante e o estado de espírito dele. Ainda me lembro de, na primeira vez que vi o filme, perguntar-me “quem fez a banda sonora?”. Quando fui pesquisar, descobri que se tratava de Jonny Greenwood, dos Radiohead — uma das minha bandas de eleição — e pensei: “está explicado”.
Comecei imediatamente a fazer os pontos de ligação entre Freddie, os filmes de PTA e os Radiohead. Comecei a ver com clareza como Greenwood conseguia acentuar essa sensação de estranheza face à personagem, extremamante peculiar. Creio que a faixa “Able-Bodied Seamen” transmite bem o que é Freddie, essa inquietação, essa indiferença para o que vão dizer, essa pouca normalidade… Um tema que os Radiohead exploram muito, essa sensação “estranha” de estar vivo, o peso da consciência, a inquietação de pertencer a um corpo imperfeito, essa distância racional entre o espírito e o corpo como meio muito limitado de expressão daquilo que sentimos. Freddie podia bem ser o protagonista de uma música dos Radiohead.
Este bromance entre PTA e Greenwood começou com “There Will Be Blood”, de 2007, seguindo-se até “Phantom Thread”, de 2017 — este último a valer-lhe a sua única nomeação aos Óscares como compositor. Em paralelo, PTA fez alguns videoclips para os Radiohead, dos quais podemos destacar “Daydreaming”. Tudo começou em 2002, quando os Radiohead estavam a gravar o album Hail to the Thief e perguntaram a PTA se podiam ir assistir ao seu recém-exibido “Punch-Drunk Love”. Desde esse primeiro encontro que a sua empatia artistica começou. Em 2012, numa entrevista ao New York Times, PTA disse: “Eu sabia que havia arranjos que [Greenwood] tinha feito dentro das músicas dos Radiohead, que obviamente me diziam que ele podia fazer mais do que apenas tocar guitarra numa banda“. Algo que aconteceria cinco anos depois desse primeiro encontro. Nessa altura, PTA usou uma faixa de Greenwood, chamada “Popcorn Superhet Receiver”, como inspiração, acabando mesmo por fazer parte da versão final de “There Will Be Blood”.
Nas composições para filmes, Greenwood procura provocar a sensação de estar numa sala a ouvir uma orquestra, essa sensação forte de não haver nada mais no nosso espaço para além da música. O estilo dos Radiohead é notório em várias faixas — sobretudo em algumas de “The Master”, em que fica evidente esse lado inquieto e, por vezes, dramático que acompanha os personagens. Em “Phantom Thread”, vemos uma versão mais clássica, dramática e romântica (a pedido de PTA) da sua música.
A propósito desse filme, concedeu em 2018 uma entrevista ao The New York Times onde menciona as suas inspirações: Messiaen, Penderecki, Bach e Vivaldi. Sobre a importância de Bach vai um pouco mais ao detalhe, descrevendo como na sua música “há tanta coisa no meio que eu não entendo ou nunca estudei ou não sei o suficiente sobre. Eu tenho uma educação musical tão irregular que tenho que ficar obcecado com o que sei. Talvez seja isso o que todos fazem.” Foi interessante que PTA tenha levado a que Greenwood fizesse algo mais romântico para este filme, já que o estilo dos Radiohead não é nada romântico. Enquanto que em “The Master” vemos um estilo um pouco mais fiel a Radiohead, em “Phantom Thread” vemos Greenwood a ir na direcção oposta e o resultado é maravilhoso. Talvez por isso tenhamos sempre o desejo de ver artistas que admiramos a “sair da sua zona de conforto” e a experimentar outros registos menos habituais.
Ambos artistas já expressaram publicamente o gosto que têm nesta sua parceria. PTA diz com humor que a sua relação de longo prazo se mantém como fruto do respeito e encontros românticos nocturnos. É relativamente fácil de ver que há o interesse e repeito profissional pelo outro, conjugado com uma compatibilidade natural que vai para além do trabalho. Se um dia quiserem fazer um filme sobre os Radiohead ou sobre o Thom Yorke em particular, PTA será provavelmente a pessoa indicada. O realizador e o músico encontraram uma ligação assente nos mesmos valores e princípios criativos, o que lhes permite fazer obras onde aquilo que é o personagem, o som e a imagem estejam intimamente ligados, já que todos estes elementos partilham a sua natureza.
Sabe-se que um novo filme de PTA está a caminho e não será de estranhar um novo capítulo neste bromance. A riqueza desta ligação vem pela partilha dos temas dominantes das suas obras: a tristeza, o isolamento, a rejeição; em suma, o difícil que é ser feliz para a pessoa comum. Quando vemos Thom Yorke a dançar no videoclip de “Lotus Flower”, não será o que ele sente o mesmo que Freddie sente quando decide fazer algo que os outros não entendem de todo? Não será o sentimento de Freddie o mesmo da música “House of Cards”? É provavelmente a mesma tentativa de expressão de sentimento, proveniente das mãos de artistas diferentes, um através do cinema e outros da música.