O caçador de furacões – ou como sobrevivi ao Florence
Se, em inícios de Agosto, me tivessem garantido que largaria o trabalho em Nova Iorque e, em menos de duas semanas, me mudaria para a Carolina do Norte, reagiria como se reage na presença de malucos, distribuindo indiferença e sorrisos amarelos. E se me tivessem contado que, uma semana depois de chegar à Carolina do Norte, lidaria com um furacão, telefonaria para o 911 ou para qualquer outro serviço que transportasse o interlocutor em camisa de forças para o hospício. Mas a haver louco nesta história, esse louco seria eu, pois em quinze dias despachei (dei, vendi) mobília e livros, despedi-me de um trabalho que apreciava, atulhei um carro de lixo, e arranquei rumo à Carolina do Norte, para ser recebido por Florence, o furacão por alguns meios de comunicação anunciado como o “maior de sempre”.
Para quem não viva nos Estados Unidos, a CNN, o ABC, ou outro canal de televisão (que não seja a conservadora FOX News), passam por respeitáveis, têm quase a mesma dignidade que uma ciência exacta. Sucede que a televisão americana aprecia drama, sangue, horror. Nos dias que antecederam a chegada do furacão, fui surpreendido por um estudante – para quem não saiba, sou professor – a perguntar se a universidade estaria fechada durante a tempestade. Sempre informado, redargui: que tempestade? Daí para a frente foi um ufa-ufa, um escalar de notícias e de nervos. Fiz download de aplicações para o telemóvel, agarrei-me à rádio, à tv, inquiri a vizinhança sobre sentimentos e perspectivas para a catástrofe. Os jornalistas anunciavam um furacão de categoria 4 pronto a esmagar as Carolinas do Norte e do Sul. Nesse gigante supermercado chamado Walmart já não havia água, comida ou preservativos, e o pouco que sobrava (barras de proteína, vinho, batatas fritas) era avidamente atirado para dentro dos carrinhos de compras pela multidão assustada pelo aproximar do apocalipse. Num outro supermercado, trocaram-se murros à conta de uns garrafões de água. Recém-chegado ao lugar, desprovido de água, entreguei-me à morte antes de ela chegar, ajoelhei, pedi os meus últimos desejos, perdoei os meus inimigos e disse adeus ao resto – tudo isto se passou enquanto a CNN projectava a rota da destruição.
Tinham anunciado na televisão que a ceifeira vinha aí, mas do breu pouco se vislumbrava. Deambulava pelas ruas vazias em busca de um pingo de chuva. Procurava no Twitter as primeiras imagens do dilúvio. Nada. Não pregava o olho. Temia ser apanhado em falso, ou melhor, a dormir. Tinha uma filha a proteger, como se fosse proteger alguém de um monstro com o comprimento de quatrocentas milhas. E ninguém nos mandava evacuar. Ninguém evacuava, à excepção de um culturista chamado Malibu que, mal a namorada mencionou a possibilidade de zarparem para outras bandas durante uns dias, correu para o carro, do qual só saiu já estacionado no Canadá. Greg, vizinho simpático, enviado por Deus para me acalmar, cruzou-se comigo nessa tarde para me dizer que não estava minimamente preocupado, que furacões eram como arroz doce, que talvez pusesse umas toalhas a tapar as frinchas das janelas, que o seu maior receio era ficar sem energia eléctrica durante uns dias. Este estado de espírito instigou-me a vestir os calções e mergulhar na piscina: morrendo, morreria desfrutando. Uma espécie de living la vida loca.
Esperei dois dias e meio pelo furacão. Cada vez mais devastador, segundo os jornais. A sensação era de estar num filme de terror no qual se espera que a todo o momento entre o tipo com a motosserra e nos limpe o sarampo. O céu insistia em permanecer incrivelmente azul. A chuva começou a cair numa altura em que as televisões mostravam jornalistas agarrados a varões de metal, perfazendo a coreografia de sobreviver ao vento ao mesmo tempo que debitavam o que sabiam sobre as últimas ocorrências: “Caiu uma árvore, um poste de iluminação foi arrastado, uma estrada encontra-se três metros debaixo de água, o diabo está a correr todo nu em Myrtle Beach.” Para mim, que, segundo as previsões iniciais, estava condenado a suportar a devastação ou a fugir para Maryland, o furacão Florence acabou por se revelar não mais forte do que um dia normal de inverno. Sinto-me grato por ter sido poupado ou por me terem sido concedidos mais uns anos de vida, mas também me sinto profundamente enganado pela comunicação social que, durante dias a fio, não se inibiu de contar uma tragédia que, não só nunca existiu, como apenas beneficiou quem a alimentou, os jornalistas. Daí entender melhor a minha vizinhança ou até os americanos mais afastados de Nova Iorque, que preferem acreditar em narrativas “alternativas” do que no que lhes é servido pela televisão. Entendo melhor a desconfiança destas populações mais rurais em relação ao que é veiculado pelos meios de comunicação social, em especial pela televisão. Enquanto os jornalistas preveniam para o fim do mundo, para a calamidade total, muitas das pessoas com as quais me ia cruzando, fosse na universidade ou nos supermercados, levavam as suas vidas em absoluta normalidade, encolhendo os ombros, como que dizendo quero lá saber, quando confrontados com a vinda do furacão. Já depois de o Florence ter atingido a costa, e de todos, até eu, um novato em termos de tempestades colossais, terem percebido que o apocalipse havia sido adiado para outra altura, lá continuavam os jornalistas dos diferentes canais à procura de vestígios de tragédia que lhes permitissem obter a atenção dos telespectadores. Mas essa tragédia não existiu ou, pelo menos, não ocorreu de forma tão calamitosa e abrangente como se previa. E esta desconfiança das populações menos liberais, menos urbanas, em relação à tv estende-se a outros domínios da vida, como a política. Trump pode não corresponder propriamente aos nossos critérios de verdade. Aos olhos de um europeu, muito da vida política americana pode parecer um circo. Mas para esta gente habituada a que lhes contem histórias, a política actual e a tv contam exactamente a mesma narrativa e têm o mesmo valor. Tudo parece vir de um filme de Spielberg. Nada parece dirigido às pessoas reais. Se quisermos, nada parece real.
Texto de Paulo Rodrigues Ferreira, escritor, editor da Enfermaria 6 e professor na Universidade da Carolina do Norte.