O casal de artistas Delaunay, os orfistas com sabor a Portugal
Um dos casais mais referenciais da criação artística do século XX, Robert e Sonia Delaunay abriram as portas para um novo movimento artístico: o orfismo, um estilo que resulta da junção do fauvismo e das suas cores garridas e fortes com o cubismo e as suas formas geométricas. A experimentação em tons e em amplitudes visuais tornaram-se habitués de uma dupla que chegou a passar por Portugal, no período da Primeira Guerra Mundial, já parte da conhecida École de Paris, que reunia essa ebulição cultural na capital de França. Travaram, assim, conhecimento e fizeram uma amizade forte com os artistas Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros, para depois, no seu regresso, se abrangerem nas novas expressões criativas que o século XX trazia na força da sua atualidade.
Robert Delaunay nasceu em Paris, a 12 de outubro de 1885. Dois meses e dois dias depois, nasceu Sonia, na Ucrânia. Na morte, afastaram-se mais: ele partiu a 25 de outubro de 1941, com 56 anos, sendo vítima de um cancro; ela viveu até 5 de dezembro de 1979, chegando a completar 94 anos de idade. Robert nasceu numa família nobiliárquica, ficando ao cuidado dos seus tios. Foram eles que o incentivaram a seguir a sua ambição de se tornar pintor e foi estudar Artes Decorativas em Paris. Depois de concluir esse curso, colaborou com o Salon de Indépendants e com a Société des Artistes Indépendants, à qual se juntaria na provocação que foi causando aos típicos conservadores, chocados com o abstracionismo ali premente.
Sonia Terk, nascida Sarah Ilinitchna Stern, só chegaria a Paris em 1905, depois de crescer em pleno Império Russo, adotada, curiosamente, pelos tios, que a levaram nas suas viagens pela Europa e pelas suas galerias de arte. Aos 18 anos, foi estudar arte para a Alemanha e lá ficaria até se mudar para Paris. Robert estava na Britânia, em contacto com a pintura impressionista e simbolista, e conheceria Jean Metzinger, com quem desenvolveu uma grande amizade e com quem partilhou os seus instintos neoimpressionistas. Foram conhecidos, desde então, como os Divisionistas, com grandes cubos em forma de mosaicos, pintando composições profundamente simbolistas. Nesse período, Sonia ia redescobrindo o pós-impressionismo de Van Gogh, de Gauguin e de Henri Rousseau, que Robert havia conhecido, para além do fauvismo de Henri Matisse. Depois de um breve casamento de conveniência com Wilhelm Uhde, um colecionador de arte alemão que lhe abriu as portas para o mundo da criação artística e que, na verdade, era homossexual, Sonia travou conhecimento com Robert.
A mãe deste era presença assídua na galeria do marido de Sonia e, às vezes, levava o filho. O primeiro encontro deu-se em 1909 e, rapidamente, se tornaram amantes. O casamento ocorreu em 1910 e o seu filho nasceu em janeiro no ano seguinte. Charles, que se tornaria num dos responsáveis pelo célebre clube de jazz Hot Club de France. À data, Robert trazia carreira feita, tanto nos retratos, como no tratamento da natureza em decomposição, assim como das suas fontes de luz natural. “Paysage au disque” (1907) e “Le premier disque” (1913) seriam os maiores exemplos destes seus primeiros laivos artísticos. Seria um estilo similar ao que Piet Mondrian viria a desenvolver, assim como os próprios futuristas. Também algumas séries de pinturas de exteriores, nomeadamente da Torre Eiffel, tornaram a caminhada orfista de Delaunay cada vez mais evidente e denotada. Para isso, contribuiu um sem número de pinturas não-figurativas, que captavam o brilho da cor a partir do uso e da manipulação da luz, assim como da luz que está inerente a essa força cromática. É um conhecimento e uma experiência que se tornou cada vez mais sintonizada com a de Sonia, que também se afeiçoou a essas experimentações com a cor, misturando-as e tornando-as simultâneas, despertando sensações distintas e irreverentes ao olho. Fora Guillaume Apollinaire, o poeta francês, que cunharia esse nome de “Orfismo” à caminhada artística do casal, que se separava do cubismo por esse emprego forte e contemporâneo da cor.
Sonia, aliás, pintaria uma série de ilustrações para o livro do poeta suíço Blaise Cendars, “La prose du Transsibérien et de la Petit Jehanne de France” (1913), onde desenha um livro em forma de acordeão com dois metros de largura. É um estudo sistemático da cor e das suas expressões e estruturas que assumem, que abraçam ideias da ciência e da teoria artística, mas que definem a premissa de que a pintura é uma arte meramente visual, que somente depende de elementos intelectuais, sendo que a perceção é o impacto da luz da cor em quem vê essa pintura. São os seus contrastes e também as suas harmonias que provocam movimentos que sugerem os da natureza, movimentos de simultaneidade. É a visão que é o grande tema deste estilo de expressão. Influenciados seriam muitos dos pintores deste período, a saber o norte-americano Stanton Macdonald-Wright, criador do Sincronismo ao lado de Morgan Russell, o cubista Patrick Henry Bruce, o coletivo de pintores Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), de Munique, na Alemanha, que englobava Franz Marc, August Macke e o próprio Robert, tendo exposto com eles, e o também alemão Paul Klee. Todos eles tornar-se-iam amigos do casal, que faziam parte do vasto grupo de gente que frequentava a sua casa e que partilhava os seus ideais criativos, em que a pintura se tornava poesia, entre as cores faladas e as suas relações a entoar os seus ritmos.
As pinceladas eram bruscas e vivas, com cores brilhantes em cenários escuros, que desenhavam as áreas que as circundavam. A fragmentação dos objetos discursava com os planos geométricos em constante movimento, bem mais dinâmicos que as equilibradas e sóbrias formas cubistas. Aliás, numa fase em que o Cubismo era uma força pujante no meio artístico, Delaunay era criticado por tanto uso da cor, dando a impressão de estar com um sentido saudosista em relação ao Impressionismo. Aliás, Robert chegou a ter uma exposição individual ainda em 1912, onde expôs mais de quarenta obras de cariz impressionista. Cada vez mais com vontade de se distanciar dos cubistas, expôs na Alemanha, na cidade de Berlim, pouco antes de, ao lado de Sonia, se ver forçado a mudar-se para Espanha, no País Basco, em 1914. A seu lado, tinham o amigo Samuel Halpert, pintor norte-americano, que os viria a acompanhar, depois, para a partilha de uma casa em Portugal, na cidade de Vila do Conde, com Halpert e com o pintor lisboeta Eduardo Viana. Corria o mês de agosto de 1915. Foi neste período que voltaram a encontrar Amadeo de Souza-Cardoso, que tinham conhecido em Paris, e que fariam amizade com José de Almada Negreiros. Deste período, ficaram, entre outras, duas pintura de Sonia, “Marché au Minho” (1916), inspirada pela beleza do país e da região do Norte, e “Natures Mortes Portugaises”, do mesmo ano; para além de uma série de trabalhos que faria em Espanha, pinturas dedicadas ao flamenco.
Sonia deixaria de receber apoio monetário da sua família com a Revolução Russa e foi necessário a Robert desenhar os cenários e a Sonia desenhar as indumentárias dos bailados do russo Sergei Diaghilev, que conheceram em Madrid, e de quem se tornaram amigos. Sonia continuou a desenhar vários cenários, assim como a ambicionar uma carreira no ramo da moda, mesmo depois de regressarem a Paris. Antes de volta a França, chegou a ter várias lojas por toda a Espanha, desde Barcelona a Bilbao. Contudo, foram tempos difíceis aqueles que viveram no regresso, com privações económicas, mesmo com o fim da Guerra e com o apogeu dos loucos anos 20 a chegar. No entanto, Sonia faria carreira depois de começar a desenhar peças de roupa para amigos e conhecidos e de configurar desenhos fabris com cores robustas e formas geométricas, destinadas à criação artística, sendo distribuídas pela Metz & Co. Tornou-se, assim, detentora dos direitos da simultané. Depois de desenhar o cenário e a indumentária das personagens da peça “Le Couer a Gaz”, de Tristan Tzara, juntou-se ao designer Jacques Haim na criação de um estúdio de moda. Mantinha as premissas que orientaram a si e ao seu marido nas pinturas, determinando o uso da cor e das suas relações com a forma e com a geometria como o veículo da criação na moda.
Por sua vez, Robert continuava a pintar e com motivos abstratos e figurativos. Fez amizade com André Breton, o grande pioneiro teórico do Surrealismo, para além de se tornar familiarizado com o Dadaísmo. Fê-lo enquanto desenhava pavilhões para aviões e linhas de caminhos-de-ferros, trabalhos comissionados pelo próprio governo na Exposição Internacional de Arte e Tecnologia. Nessa altura, Sonia ajudava-o a decorar esses mesmos pavilhões, embora sempre muito autónoma no caminho que vinha fazendo, em especial no cinema, onde desenhou vestuário para “Le Vertige” (1926), de Marcel L’Hebrier, e “Le p’tit Parigot” (do mesmo ano, de René La Somptier). A grande quebra na Bolsa de 1929 ajudou-a a reerguer-se no seu sentido artístico, abdicando da veia negocial e colaborando com o seu marido ao lado de nomes como o cubista Albert Gleizes, Léopold Survage, Jacques Villon e Roger Bissière. Depois, a Segunda Guerra Mundial obrigou o casal a mudar-se para Auvergne, no centro do país. Porém, Deulanay, que já padecia de cancro à data, não resistiu aos esforços desse período da sua vida e faleceu no ano de 1941, aos 56 anos de idade.
Sonia continuaria a fazer carreira e permanecia como membra da associação do Salon des Réalités Nouvelles, que havia recebido a primeira organização expositiva do casal. Sonia doaria mais de uma centena de trabalhos seus e do seu marido ao Musée National d’Art Moderne, para além de se tornar a primeira mulher a ter uma exposição retrospetiva dedicada a si no museu do Louvre, decorria o ano de 1964, depois de já ter tido honras expositivas na Alemanha e até nos Estados Unidos. Delaunay, porém, continuaria a dar cartas no design, vendo pinturas suas transpostas para graffitis, desenhando peças de mobiliário e de joalharia, para além de outros têxteis, e decorando até carros, em especial o Matra 530. Aqui, arriscou em efeitos óticos para que o carro assumisse uma cor leve em movimento, de forma a evitar acidentes por agarrar muita da atenção dos outros condutores. No ano de 1975, tornar-se-ia parte da Legião de Honra francesa e, quatro anos depois, aos 94 anos, faleceria, sendo enterrada em Gambais, ao lado do seu companheiro de vida, Robert.
Robert e Sonia Delaunay foram, assim, uma das parelhas de maior sucesso, apesar de terem assumido um percurso relativamente distinto. Robert, mais focado na pintura, no choque com os movimentos passados e presentes; Sonia, mais desperta para as diferentes expressões artísticas e para as formas várias de tornar a pintura uma montra para o resto da atividade criativa, desde a moda até à mecânica. Pelo meio, uma fugaz passagem por Portugal, que os fez conhecer os grandes vanguardistas que davam cartas na construção de um caminho artístico. Seduziram-se pelas expressões locais dos países por onde passaram, mas sempre com um claro motivo: o da exploração da cor e o do desenho geométrico, nas suas fragmentações e nas suas concretizações, nas suas ambições e nas suas realizações.