O cinema que nunca saiu do Japão
Chegam agora aos cinemas três filmes japoneses que nunca estrearam fora do seu país. Uma selecção que vale a pena descobrir no grande ecrã, em Lisboa e no Porto.
Começo por fazer um aviso muito importante: sou um leigo no que diz respeito ao cinema japonês. Provavelmente uma grande parte dos cinéfilos ocidentais assim o serão.
Não estou a dizer que não conheço alguma coisa do cinema do país: é claro que já vi Ozu, Kurosawa, Mizoguchi, Suzuki, Oshima, Kitano, Kore-eda… mas conhecer verdadeiramente a riqueza de uma cultura não pode ser comprovada por este cardápio de referências que são bem conhecidas, e estimadas, fora do seu país de origem. Era como se um fanático de futebol justificasse a sua paixão por saber dizer meia dúzia de dados sobre a carreira de Eusébio, Pelé, Ronaldo, Messi e um ou outro jogador menos popular.
Portanto, se ninguém leva a sério um tipo que diz gostar de bola se só tiver estas referências… porque é que achamos que sabemos muito do Japão porque podemos comer sushi e ver as animações do Miyazaki?
Um verdadeiro cinéfilo gosta de sugerir títulos que considera menos vistos ou injustamente menosprezados. Nenhuma pessoa que gosta de cinema irá aconselhar os grandes clássicos que estão em todas as listas que elegem os melhores de todos os tempos. Sim, considero “Casablanca” e “O Padrinho” como obras primas, mas qualquer pessoa com uma cultura geral reduzidíssima saberá que esses filmes existem.
E o mesmo se pode dizer do cinema japonês. Todos os grandes realizadores conhecidos internacionalmente são essenciais, claro. Mas há muitos, muitos, mas muitos outros que nunca saíram da sua terra. Porque é que não passaram cá para fora? Porque é que não falamos, ou ouvimos falar, deles?
É com esse propósito que agora começa o ciclo “Mestres Japoneses Desconhecidos”, no Cinema City Alvalade e no Teatro do Campo Alegre. A distribuidora The Stone and the Plot estreia em Portugal três raridades de cineastas que qualquer leigo em cinema japonês como eu nunca ouviu falar.
O nosso conhecimento é sempre limitado perante tudo o que ainda não lemos, ouvimos e vimos. E gosto quando alguém põe a nu a minha ignorância em relação a certos temas: quer dizer que ainda há muito terreno para desbravar e, quiçá, boas descobertas para fazer.
Foi o que me deu este ciclo, que traz três filmes do estúdio mais antigo do Japão ainda em actividade, a Nikkatsu, seleccionados pelo especialista Miguel Patrício. Não poderiam ser propostas mais diferentes entre si, mas todas partilham o mesmo ano de lançamento.
São títulos com personagens fortes em histórias muito díspares. Os meus fracos conhecimentos poderiam sintetizar tudo assim: “O Menino da Ama” faz lembrar Ozu, “Mulheres de Ginza” Mizoguchi, e “Cada Um Na Sua Cova” parece já apontar para a nova vaga. Mas há muito mais do que isto para descobrir nestas raridades.
“O Menino da Ama” lida com o choque de classes sociais através de uma premissa clássica: Hatsu, uma jovem modesta do campo, muda-se para Tóquio para servir uma família abastada, criando laços mais profundos com o filho. Aos poucos vamos acompanhando a sua vida no seio daquela família em que a criança assume um papel central. Ao longo de vários episódios acompanhamos uma série de vivências mundanas que passam pela relação entre pais e filho, a hierarquia que separa classes sociais, as ilusões criadas pela vida grandiosa da metrópole, e a persistência da honra quando a condição social impede voos maiores.
É um filme que, do início ao fim, nunca deixa de nos surpreender na jornada que proporciona à sua protagonista. O realizador Tomotaka Tasaka, que também assina o argumento, conduz o espectador através de uma estrutura narrativa aparentemente simples ao início, que se vai adensando à medida que conhecemos melhor o carácter e a força de Hatsu. Tem momentos de comédia, principalmente na relação entre ela e o menino, ele que é por vezes ligeiramente irritante, mas que noutras ocasiões revela ter uma grande sensibilidade. É no crescimento dessa relação, que será também uma lição de vida para Hatsu, que se encontra o centro do filme e das suas melhores peripécias, que conduzem a um desfecho nada previsível, um volte face que diz muito sobre a protagonista e tudo com o que fomos confrontados até então. Uma bela odisseia em que o conceito de família, nas suas várias vertentes (não falamos só na família literal do filme), torna-se essencial.
Já “Mulheres de Ginza”, o meu preferido da selecção, é um mosaico de histórias em que se mostra como a miséria e a comédia sempre andaram de mãos dadas. Tudo se passa numa residência de gueixas, onde conhecemos não só a patroa como todas as suas subordinadas. O início do filme é logo um “pontapé de saída” amargo para tudo o que se seguirá, com a venda de uma jovem pela família que procura melhores condições de vida, e que se torna assim na mais recente “aquisição” daquele estabelecimento. E é difícil engolir esta realidade, em que uma jovem tão nova se torna num produto, mas o realizador Kôzaburô Yoshimura orienta-nos para os temas morais do filme sem ser maniqueísta ou didáctico, apresentando-nos esta situação, bem como outras que dizem muito sobre a profissão das personagens e os seus dilemas pessoais, com uma extrema humanidade.
É um filme de mulheres, mas há muitas outras personagens em “Mulheres de Ginza”, e nenhuma das várias histórias secundárias parece acessória ou inútil. Tudo se encaminha para uma tragédia que aos poucos parece anunciada, e com ela surge uma espécie de filme policial dentro do drama das gueixas – nele, é uma delícia encontrar um inspector obcecado pelo que lê nos romances de autores como Mickey Spillane ou da dupla por trás de Ellery Queen.
Todas as pequenas e grandes personagens deste filme têm algo a dizer, e o elenco é irrepreensível. Vale a pena destacar Yukiko Todoroki, como a proprietária da casa de gueixas, que faz um trabalho extraordinário, caminhando entre as várias camadas psicológicas da sua história pessoal, e as suas mudanças de temperamento, sem nunca perder a réstea de esperança e redenção que persistem (ou querem persistir) nesta personagem. Os grandes planos do seu rosto, principalmente no momento em que se vê confrontada com a sua maior atribulação (em que o único sentido que parecia ainda existir para justificar a sua vida se desvanece), estão entre as coisas mais belas que encontrei no cinema japonês. Refira-se, a título de curiosidade, que o filme contou com a colaboração de Kaneto Shindô na escrita do argumento, que também já era realizador e que teve uma das gueixas (Nobuko Otowa) a protagonizar muitos dos seus filmes.
Por fim, há “Cada Um Na Sua Cova”, de Tomu Uchida. É um objecto invulgar, lidando com temas que, à época, poderão ter sido polémicos: a perda da identidade japonesa, cedida em troca da modernidade trazida pelas maravilhas do ocidente, às quais vinham atreladas uma mudança de costumes imprevista por alguns, e desejada por outros que se queriam libertar das amarras da sua cultura em detrimento de outra, aparentemente mais confortável e prazerosa. A americanização do Japão povoa uma história de tensões familiares e relações amorosas em que tudo se desagrega, naqueles tempos em que os fantasmas da segunda guerra mundial estavam muito presentes. As tradições milenares, para uns, deixam de fazer sentido, em troca das roupas e do modo de ser dos states. Qual o preço a pagar por essa “invasão”?
O cinismo deste filme, que o torna muito moderno e autêntico, é evidente a todo o momento, desde a magnífica sequência inicial que nos remete para uma personagem que, depois, estará mais distante da narrativa, como também está distante das relações ambíguas entre todos os outros, mais uns que tentam impôr-se numa luta diária pela sobrevivência que faz parte da vida da grande cidade, onde o grande prémio é não termos sido nós os espezinhados do dia. Um filme nada fácil de digerir, com os vários conflitos morais e psicológicos a provocarem desconforto no espectador. Em 1955 também já se olhava para o Japão contemporâneo com olhos sarcásticos e ácidos.
Estes filmes tiveram projecções pontuais fora do Japão, e formam uma selecção curiosa, que mostra como um único ano na História do cinema japonês podia abarcar tanta diversidade de estilos e narrativas, desafiando as convenções canónicas que foram ganhando força com o passar dos anos – até porque a qualidade destes filmes “perdidos” me faz pensar na criação desses cânones, e na injustiça muitas vezes inerente a esse processo, bem como me fez pensar como tudo seria diferente se esses cânones tivessem não os cineastas que fazem hoje parte de um conhecimento básico do cinema japonês, mas sim Tomotaka Tasaka, Kôzaburô Yoshimura e Tomu Uchida.
Numa era em que o património de uma arte com 125 anos traz muitas pessoas às salas, este pequeno ciclo (que, a ter sucesso, poderá originar outros) é um exemplo de curadoria no verdadeiro sentido do termo. Sim, é importante recuperar aqueles grandes clássicos que toda a gente (diz que) conhece, mas mostrar a obra de um realizador bem estimado ou de nome mais sonante junto do nicho da cinefilia não será tão arriscado como distribuir obras desconhecidas. Ou seja, trazer Antonioni, Rohmer ou Bergman de novo às salas é um trabalho totalmente meritório, mas é uma aposta mais “segura”. E este trio de filmes é, também por isso, uma preciosíssima descoberta. É uma forma de apontar novos caminhos, de contrariar as ideias feitas que temos de cinemas tão distantes de nós geograficamente. E depende de todos nós que esta iniciativa possa ter “descendência” no futuro. Basta ir descobrir estes “Mestres Japoneses Desconhecidos” e passar a palavra.
O ciclo estará em exibição de 4 a 10 de Novembro no Cinema City Alvalade e de 11 a 17 de Novembro no Teatro do Campo Alegre.