O compromisso do jornalismo com a sociedade e a verdade
No jornalismo não vale tudo. Aliás, o dever ético e deontológico implica um compromisso com a verdade, um compromisso com essa questão que não é tão relativa assim. A verdade é uma, os factos são uns, unos e transparentes. Para interpretações que se desejem, elas estão à disposição dos cronistas e outros tantos colunistas de opinião, que apresentam a sua posição perante alguns desses factos. No entanto, o rigor inerente à investigação jornalística é perene e não é beliscado consoante os termos passam.
Por mais que os instrumentos de trabalho tenham evoluído e a dimensão na qual se proporciona a elaboração do registo jornalístico tenha mudado, as premissas de atuação do jornalista devem beber das suas origens. Não dos títulos fortes e pungentes, não das fábulas que enchem o cor-de-rosa de mistério e de intriga, mas de algo concreto, que não dê azo a que as verdades sejam múltiplas. Não é assim. A linha editorial de um órgão de comunicação social deve ter isso em conta, a menos que defina, de forma clara e inequívoca, que a sua causa seja o sensacionalismo.
O ambiente digital abre as portas a que se propague, de forma quase instantânea, todo e qualquer conteúdo jornalístico, mesmo ele sendo pago ou acedido somente por subscrição. Não irei tentar discutir, nem sequer sugerir o melhor modelo de negócio para um jornal ou para outro qualquer órgão, visto que sou um leigo nesse prisma. Tento, somente, apresentar a minha posição – à boa maneira de um eventual cronista – perante o estado do jornalismo atual. Nem há a necessidade de evocar o conceito “fake news” para que se possa falar sobre isso. Por pior que o jornalismo esteja, não considero, de momento, ser a maior problemática, embora pese a possibilidade de isso vir a acontecer, de futuro, por cá.
Aquilo que está em causa é o quão saudável está o jornalismo em Portugal. Se é capaz de criar conteúdos originais, fidedignos, verosímeis, que retratem tal e qual aquilo que é a realidade e o que se sucede no seu quotidiano. Se é capaz de ser influente, de forma positiva e construtiva, no modo de ser, de estar e de pensar da sociedade, alcançando vários tipos de literacia e diferentes formas de olhar para o mundo. No entanto, o compromisso com a verdade é, desde logo, o primeiro passo para um jornalismo competente e sadio. As questões da comunicação, da forma de exprimir os factos – não os maquilhando ou distorcendo – passam, de igual forma, pela linha editorial assumida por cada órgão de comunicação social. Porque, no seu fundamento, está uma identidade, identidade essa que só se torna homogénea com outras tantas no rigor jornalístico que se pretende, que versa nos códigos legais de direito. E essa identidade deve ser o mais livre possível, o mais diferenciada possível, sem nunca ultrapassar o valor de verdade.
Porém, quando chegamos à fase em que o Estado entra para visar um órgão de comunicação social, algo está mal. Num país democrático, com valores assentes na liberdade de imprensa e de expressão, com uma conduta que faz inveja a muitos dos cenários autocratas e até distópicos que se vão visualizando em Américas e Ásias bem reais, é crítico. Isto porque condena a atuação jornalística de um órgão, sancionando o seu método, abrindo as portas legais a essa atuação. Quando o jornalismo é composto por uma via populista, em que forja testemunhos e em que omite importantes dados da investigação, cria o tal viés, cria uma realidade alternativa que, dada ao conhecimento como verdade, não o é. É uma outra coisa. Em 2019, com o escrutínio que existe e que leva a que exista no que é escrito ou transmitido, difícil é que escape alguma coisa a quem se integra das coisas com isenção e sentido crítico.
O jornalismo deve estar com essa consciência. Fazer o mea culpa quando assim necessário, admitindo a sua falibilidade (até os órgãos de comunicação social mais comprometidos com a sua missão e com os valores inerentes a esta têm margem de erro). No entanto, não fazer destes lapsos linhas orientadoras da sua forma de estar e de informar o público, de ter um condão de construir realidades alternativas, que, por sua vez, leva a que opiniões sobre os assuntos partam, desde logo, de algo que não é bem assim. Cada um pode assumir como cada qual, mesmo dizendo que são truques ou outra coisa qualquer. Os tais truques são, nos dias que correm, vicissitudes de um descuido ético, por vezes, ou até de uma necessidade de tal imediatismo que se perde a essência da notícia, o fragmento de verdade que ajuda a que o mundo seja de uma forma e não de outra, como aparenta a sua comunicação.
Não acredito em má fé de quem quer que seja que faz jornalismo em Portugal. Numa sociedade plural, que, implicitamente, aceita o diverso e o múltiplo, os órgãos de comunicação social também estão num contexto competitivo entre si, entre aqueles que procuram dar melhor as notícias e veicular melhor a verdade. É um desafio que, apesar de usar o termo “melhor”, nem sempre é quantitativo. Por vezes, passa pelos números, pelas estatísticas, pela capacidade de estar lá antes do outro, por mais que a informação não seja assim tão cuidada e criteriosa. Há exames de consciência, individuais e laborais, a serem feitos antes de se partir para o clique que lança a verdade (ou uma versão desta). Trata-se do facto que está ali ou de uma interpretação, que lhe dá um significado distinto daquilo que realmente é e que, por consequência, gerará perceções erradas? Está em causa a essência do jornalismo. Como trabalhadores, como prestadores de um serviço público, merecem, evidentemente, que os seus direitos sejam zelados e que a sua estabilidade laboral e jornalística seja garantida. É uma causa fundamental na sociedade atual, em que a informação se multiplica e há a necessidade de haver gente credível e capaz.
Seria muito bonito dizer que a questão da precariedade moral e jornalística é de superior importância à da precariedade laboral. Não é assim tão linear e geraria uma discussão sem fim. No entanto, é premente que se sacudam ambas, em simultâneo. Está em causa a sociedade, tal como ela é, tal como ela pensa, tal como ela age. É o compromisso de qualquer jornalista, é um compromisso com honra, mas também de responsabilidade, sustentado no sentido da verdade.