“O Espelho” de Andrei Tarkovsky: auto-retrato da vida e pessoa artísticas
Em qualquer discussão no âmbito da história do cinema ou das artes no século XX, é de incontornável menção o nome de Andrei Tarkovsky. O cineasta, para além de figurar com as mais importantes figuras do cinema russo como Sergei Eisenstein ou Mikhail Kalatozov, enquadra-se também como dos grandes artistas de toda a sétima arte.
Partindo do ritmo lento e tom melancólico, acinzentado da cinematografia conterrânea, a vontade de experimentação dos artistas da Nouvelle Vague e o ênfase espiritual, metafísico de cineastas como Robert Bresson e Ingmar Bergman, Tarkovsky expande a escala em produção, desafia tanto censores como convenções e transcende géneros, basta olhar para a sua influente e conceituada filmografia. Viajando tanto pelo distante passado em Andrei Rublev (1966) como num futuro distópico em Solaris (1972) e Stalker (1979), visões traduzidas no seu nativo russo ou por línguas estrangeiras como em Nostalgia (1983) e O Sacrifício (1986), Tarkovsky não conheceu barreiras na exploração do abstrato e das grandes questões. Da arte e cultura, religião e ciência, guerra e amor, à própria vida, sobre o seu sentido e inevitável término. Tudo tratado por uma abordagem cuja mestria criativa transforma o cinema em sonho poético, emocionalmente ardente hipnose a experiência, ferida vitalícia o resultado.
Destaque máximo do artista e da sua arte, do estilo à substância, surge O Espelho (1975). Íntima personalidade no cerne, coração autobiográfico a bombear todo o organismo, dos retratos mais belos, honestos e profundos que o cinema já ofereceu, vive pujante vida neste filme. A anestesia hipnótica de que só Tarkovsky é capaz suspende a gravidade e leva o espetador a levitar por traços da infância, adolescência e vida-adulta do autor, na forma de um homem de meia-idade moribundo a sonhar e recordar o seu percurso até então. Reflexões sobre guerra, religião e o seu país alicerçadas. Tal caminho, pavimentado por experimentação única em estrutura e exposição, mais panorama visual e sonoro de incrível beleza sobre os sentidos, penetra em imediato o espírito dos que assistem. Pega fogo ao coração por intensa paixão que se vai acumulando, chamas cicatrizantes cujas lágrimas não extinguem.
O filme abre com um rapaz pré-adolescente (Ignat Daniltsev) a assistir um programa de televisão. No televisor, uma médica cura um jovem da sua gaguez. Milagre feito e título subsequentemente introduzido, segue-se uma ventosa mas serena paisagem verde com uma mulher (Margarita Terekhova) no centro a observar um caminho no horizonte enquanto guarda os filhos. Desse fundo surge um homem supostamente perdido que aborda a loura figura. Perguntas sobre caminhos, chaves de parafusos e pregos mais uma cerca partida pelos dois sentados depois, o autodenominado médico manifesta-se apaixonado. A situação da moça era inteiramente diferente. Mistério desvendado pelo sedutor, nenhuma aliança revelava marido. Versos narrados durante a cena contam o resto da história: o esposo abandonara a mulher e filhos, ficando a própria a aguardar o seu improvável regresso pelo tal caminho. De volta a casa, a mulher fica a mirar o fatal trajeto por uma janela, em lágrimas. Tal como os estilhaços do que resta do coração, um celeiro fica submerso em chamas. Num ambiente de sonho, uma das crianças chama pelo pai. Entretanto, do cenário de 1935 regressa-se ao presente, quarenta anos depois. Ouve-se uma chamada entre um homem (Innokenty Smoktunovsky) e a sua mãe (Maria Vishnyakova, mãe de Tarkovsky). Conversa sobre anginas, falecidas ex-colegas e o abandono do pai incide num habitual impasse. O filho questiona o porquê das bulhas. A mãe desliga, apenas.
Introduzida a premissa central, inicia-se a viagem pelo psíquico do nosso protagonista angustiado; nostálgicas memórias, remorsos e reflexões pessoais expostas em poético e surreal detalhe. A infância e pré-adolescência, feliz inocência a esbarrar contra a ausência do pai e ressentimento da mãe. O paralelo, quase déjà-vu, entre o infeliz antagonismo com a sua mãe e a presente situação familiar, ex-mulher e filho progressivamente afastados; solidão demasiado próxima. A primeira paixão, ocorrida sob o contexto da II Guerra Mundial e num esforço de militarização de jovens traumatizados. Os vizinhos espanhois do presente, refugiados da brutal guerra civil e cuja assimilação ao novo país não extinguiu as saudades. A tentativa pelo governo soviético de adulterar o legado histórico cristão-ortodoxo da Rússia e a crise do percurso comunista ilustrada pelo conflito fronteiriço entre a China e a URSS. Tudo isto com memórias e sonhos sobre a mãe, o seu desgosto face ao marido e subsequente descarga sobre o protagonista, no seio.
Na simulação do fluxo de consciência de um poeta, em O Espelho as ferramentas cinematográficas são empregues de extraordinário modo. A respetiva tradução dos sonhos só encontra paralelos nos melhores dos filmes, Un Chien Andalou (1929) e Persona (1966) servindo entre escassos exemplos. A fotografia de preto-e-branco, movimentos desacelerados por slow-motion e silencioso áudio específico nos ruídos, ajudam a ferver o poderoso surrealismo das imagens expostas. No retrato da realidade memorizada, fotografia de planos longos e cenários naturais compreendem uma húmida e esverdeada beleza de tirar o fôlego, submersa em melancólica nostalgia. Conjugando ainda filmagens caseiras a documentar os eventos históricos em escrutínio, a total harmonia na montagem consegue um ritmo fluído que conduz o espectador pelo ambicioso organismo.
Da espontânea e hipnótica abordagem psíquica, Tarkovsky deixa sem tréguas a nu a sua pessoa, vocação poética dominante. O impacto emocional que tal expressiva personalidade alcança sobre o espectador reforça o lugar do filme em qualquer panteão cinematográfico. Viagem espiritual equivalente às melhores obras de Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer. Numa exaltação do poder da face humana, planos próximos dos atores capturam expressões de uma qualidade pitoresca, cicatrizante no imediato. Atribuindo o coração poético da película, a narração de poemas pelo pai do cineasta, Arseny Tarkovsky, densifica a pessoal intimidade da obra, acrescido fervor sobre a sua beleza. Utilizada de modo parco para máximo efeito, a banda-sonora de Eduard Artemyev, constituída por melodias clássicas com linda composição, potencia o remate emocional em cenas-chave. A conduzir toda a orquestra fílmica, a direção e argumento desenham poderosos tom melancólico e atmosfera hipnótica enquanto contam uma vida e pessoa num íntimo e honesto detalhe avassalador sobre o intelecto e emoções.
Não obstante a tentativa até aqui feita, descrever o que Andrei Tarkovsky alcança no âmbito artístico com O Espelho é muito difícil, talvez impossível sem banalizar o tamanho feito. Passando o texto para a primeira pessoa, o filme compreende um efeito indescritível sobre mim. Apesar de várias vezes visto e revisto, cinco anos a compreenderem as experiências e um conhecimento vasto quase instintivo da superfície da obra, a exploração intelectual dos seus significados permanece tão inconclusiva quanto a primeira vez. Entretanto, o impacto emocional permanece igualmente renovado e enérgico. Uma peça artística reduzir-me a estado de lacrimosa transe vezes e vezes sem conta, é algo que ultrapassa a compreensão. Alma submersa em chamas de paixão, sempre. Tal como o cineasta se encontra aqui espelhado, o filme transcende o seu formato e adapta-se a um espelho para a minha vida. Penso e espero ser assim para qualquer pessoa. Mais poderosa capacidade em arte não é possível.