O espírito cívico e pedagógico de António Sérgio
António Sérgio foi uma das personalidades mais badaladas na entrada do século XX até aos seus meados. Conheceu a monarquia, a república e a ditadura e influenciou todos os regimes nos quais Portugal viveu. Destacou-se como escritor, professor, pensador, mas também como político, advogando, desde cedo, os ideais republicanos e democráticos. Foi neste registo que pautou a sua vida e a sua obra, dando origem ao movimento social e literário da Seara Nova, que perdurou até aos fins do Estado Novo. A sua influência subsiste hoje na toponímia das ruas portuguesas, mas também no ensino, onde foi tão pródigo, emprestando o seu nome a uma escola secundária de Vila Nova de Gaia.
António Sérgio de Sousa Júnior nasceu a 3 de setembro de 1883 em Damão, antiga possessão ultramarina portuguesa na Índia, crescendo também na África portuguesa, onde viveu durante os seus primeiros anos, tendo sido o seu pai governador do Congo português. Chegado a Lisboa, ingressou no Colégio Militar e na própria Escola Naval, formando-se em Engenharia, por via do gosto por geometria e por matemática, e tornando-se membro da Marinha portuguesa. No entanto, o seu gosto pela poesia e pela filosofia desde cedo se expressou, maravilhado com a filosofia de Baruch Espinosa e com a poesia de Antero de Quental (“Notas sobre os Sonetos e as Tendências de Antero de Quental”, de 1908, é a sua primeira obra). São duas referências naquilo que seriam os passos futuros do pensador, sustentado nas raízes portuguesas, mas sempre com um amplo sentido de pluralidade e de universalidade. As viagens que realiza como oficial da Marinha conduzem-no pela África e pela Ásia portuguesas, onde havia crescido, mas cessariam já no ano de 1910, com a deposição da monarquia. Por lealdade ao monarca, abdicou do seu posto na Marinha real e dedicar-se-ia, por fim, à vida intelectual. Sentir-se-ia interessado pelo movimento da Renascença Portuguesa, onde já estavam o poeta Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão, então diretor da Biblioteca Nacional, embora não de todo, dado o facto de que não via no saudosismo vigente uma forma de resolver os dilemas do país. Inspirava-se no espírito dos estrangeirados Luís António Verney, Mouzinho da Silveira e Ribeiro Sanches e no seu cosmopolitismo liberal e refutava aquilo que considerava como o “parasitismo dos Descobrimentos”.
Casou-se com Luísa Epifâneo da Silva, daí até agora conhecida como Luísa Sérgio, também ela uma pedagoga que apoiou e ajudou a lançar a produção intelectual do seu marido, onde advém “Educação Cívica” (1915). Dois anos depois da queda da monarquia, em 1912, concorre e é nomeado para a secção de Filosofia da recém-formada Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ultrapassando o seu futuro colega da Seara Nova, Leonardo Coimbra, que se viria a tornar no fundador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Intervalaria o trabalho aqui com uma pós-graduação no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, núcleo onde se cultivou a importância da formação espiritual e moral da criança – a ideia de uma Escola Progressiva. Seriam premissas que Sérgio importaria para Portugal, onde fez parte do comité encarregue da reforma do Ensino Português na Primeira República. Seria um percurso conhecido como o Projeto Camoesas no qual Sérgio ingressaria, inspirando-se no contacto pessoal que teve com os suíços Édouard Claparède e Adolphe Ferrière, que deram contributos indispensáveis para o desenvolvimento da psicologia infantil e do funcionalismo. Genebra foi só um dos pontos de passagem do português, que também esteve em Paris, em Londres, em Madrid e até no Rio de Janeiro.
No período governativo de Sidónio Pais, conhecido como o “presidente-rei” por Fernando Pessoa, Sérgio começaria a sua carreira editorial, lançando a revista “Pela Grei”. Com vista a formar a opinião pública política e a fazê-la intervir na sociedade, sintonizou-se com o presidente no sentido de uma regeneração nacional e convidou alguns nomes para apresentar um programa de Fomento Nacional, porque, apesar da partilha de valores com o governo, considerava-o opressor e anti-liberal. Já após esta experiência governamental, chega a criação da Seara Nova, o movimento que viria a colocar António Sérgio como um dos vultos mais relevantes da intelectualidade portuguesa, e que deu origem a uma revista cultural. Juntou-se a Raul Proença e a Jaime Cortesão para responder às necessidades de uma voz ativa e pedagógica no seio da sociedade nacional, com um espírito militante e crítico, quebrando os pretensiosismos e os preciosismos associados à crítica literária e cultural e ao estudo da sua produção. Seria uma autêntica incubadora de importantes figuras da poesia, da prosa, do teatro, mas também da sociologia, da economia e até da política. Entre outros, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Agostinho da Silva e Jorge de Sena.
António Sérgio saltaria, precisamente, daqui para o Ministério da Educação do governo de Álvaro de Castro, corria o ano de 1923. O objetivo deste convite era o de criar uma Junta de Ampliação de Estudos, capaz de apoiar unidades de investigação e escolas modernas, mas também de incentivar a presença de jovens estudantes no estrangeiro, no regime de bolseiros. Ainda nesta proposta, considerou os portadores de deficiências nesta proposta e pensou em mecanismos voltados para a sua educação; assim como pensou no cinema como um instrumento pedagógico para os estudantes. Seria um primeiro protótipo daquilo que se viria a tornar a Fundação para a Ciência e Tecnologia, mas que ainda passaria pela rígida Junta de Educação Nacional, associada ao Estado Novo. Para além de projetar esta instância, fez questão de apresentar o cooperativismo como uma solução para os problemas que se afiguravam na sociedade. Assim, idealizou as primeiras cooperativas de habitação para os mais desfavorecidos nos grandes centros urbanos, assim como em outras cidades importantes do país; em que seriam os indivíduos e as comunidades os responsáveis pela sua gestão, e não mais os organismos políticos e partidários.
Foi precisamente com a emergência do Estado Novo que se viu obrigado, de novo, a sair do país, partindo para Paris no ano de 1926, onde esteve até 1933, frequentando algumas tertúlias de teor racionalista, envolvendo-se no espírito científico que se desenvolvia então naquele país. Nesse ano, com um desvio por Madrid, e por ser amnistiado, regressou, figurando como um dos rostos mais sonantes do movimento cooperativista, associado ao socialismo democrático no qual se posicionava politicamente. Foi uma fase em que se formalizou como um dos principais polemistas em Portugal, numa constante atividade de resistência e de combate ao que cunhava o regime ditatorial. Ao lado de nomes como o poeta José Régio, o republicano Mário Azevedo Gomes e o comunista Bento de Jesus Carcaça, fez-se bater pela causa democrática, juntando-se, futuramente, ao Movimento de Unidade Democrática, encabeçada pelo General Norton de Matos. Neste movimento, conviveu com os célebres médicos Miguel Torga e Abel Salazar, e com os então estudantes e futuros membros da sociedade civil Salgado Zenha, Maria Lamas e Irene Lisboa. Continuaria junto à causa democrática quando Humberto Delgado se candidatou à presidência do país, sendo um dos responsáveis pela sua tomada de iniciativa contra o regime, cogitando também um eventual golpe militar. Prosseguia como uma das vozes mais ativas em prol da cultura, o resultado da atividade democrática, que só se silenciou à data da sua morte, a 24 de janeiro de 1969, faltando ainda cinco anos para o fim da ditadura portuguesa.
Era uma voz que se marcava pelas influências socialistas que apanhou aqui e ali, no seu périplo pelo mundo, embora o fundamental para ele fosse a questão das classes operárias e campesinas e as suas condições de vida e, por isso, cruzou alguns olhares com o marxismo. Transcendia, assim, as questões associadas ao regime político e discursava com inspiração em Alexandre Herculano e em Oliveira Martins, dois historiadores de Portugal do século XIX. Seriam nomes que o ajudariam a pensar a educação para o país, com organismos em cada município e com um forte pendor cívico e social, à imagem daquilo que a pedagoga italiana Maria Montessori pensou, numa dialética direta entre a liberdade e a disciplina da criança e da possibilidade da auto-educação cujo cenário seja o espaço escolar. A transformação das mentalidades no chegado século XX foi, também, um importante palco de atuação, tendo em conta essas novidades de um pensamento individual e social que chegava do estrangeiro e que se aplicava esparsamente em Portugal. O seu olhar em relação à história do país fixava-se nas dinâmicas da população e dos seus proveitos económicos, entre o transporte e a fixação, e cruzava-se com o que estudava da psicologia social. Descurava, assim, a toada lendária e mitológica que orbitava as histórias camonianas de Portugal, como as de Pedro e Inês ou as dos Descobrimentos, e focava-se na sociologia que orientava as comunidades nacionais no decurso dos anos e dos séculos. Porém, o sentido da espiritualidade que procurava na educação e na ação social seria o de purificação através da vida cívica presente e edificante de uma nova sociedade nacional.
“No seu papel de organizadora de atividades, a educação não tem por objeto manter a estrutura da sociedade de hoje; tem por objeto melhorá-la, revolucioná-la”.
Era a essas comunidades que dirigia o trabalho e o pensamento que desenvolveu, procurando a construção de uma opinião pública com uma maior base social, potencializando o cenário de uma democracia efetiva, com base espiritual. Conseguiria uma maior fiscalização daqueles que representavam essa base social em sede parlamentar, sendo sempre o fim da ação e não meros intermediários daqueles que davam a cara pela população. Tudo isto versava naquilo que foram os seus “Ensaios” (oito volumes lançados entre 1920 e 1958), por entre outros tópicos associados à história, à filosofia e à literatura, procurando fomentar o espírito pedagógico e crítico que habitava dentro de si. Para que isso se concretizasse, teria de ter, como pano de fundo, uma democracia em funcionamento pleno, pelo que sempre se bateu pela sua vigência, começando pela essência de cada um e pela sua libertação. Entrava em convergência esse espírito socialmente ativo e estimulado com as métricas científicas pelas quais sempre se orientou, advindas da formação de engenharia, alinhando-se com as metodologias que se vinham construindo para as ciências sociais. Era desta forma que conseguia confrontar o estado do quotidiano perante as condições visadas pelo seu pensamento e pelo seu espírito democratizante, essencialmente da educação e da cultura, num pensamento-criação em que o intelecto é ativo e não estanque. Uma cultura que se queria, para cada um, crítica, universalista, transpondo a restrição imposta pelo sentido de nacionalidade. Esta constante transcendência dos limites impostos pelas condições e pelas caraterísticas de cada um seria sempre combustível para o seu pensamento, que, para além de se perpetuar na Seara Nova, também se fez presenciar na “Homens Livres” (1923, onde liderou a redação), na “Lusitânia” (1924-27) e no semanário “Mundo Literário” (1946-48).
“Quanto a mim, atuo a favor do ideal democrático, é certo; mas repetindo mil vezes a afirmação do Proudhon: “democracia é demopedia, democracia é educação do povo”. É treino do operário para se governar a si mesmo através das cooperativas e dos sindicatos, da estrutura do município e da província (associação de municípios), sem necessidade de chefes ou de mandões…”
Indispensáveis se tornaram os contributos que vinham de fora, onde esteve e onde até lecionou, como na Universidade de Santiago de Compostela em 1933. Este olhar plural e internacional inspirou médicos, como Barahona Fernandes, arquitetos, como Raul Lino, e até políticos, como Mário Soares; assim como outros pensadores e autores, como Natália Correia. A pedagogia seria um caminho encontrado e que unia muitos olhares e muitas mentes, porque a educação seria o espelho da sociedade e, como tal, o grande fator da regeneração nacional pela qual pugnou, com o sentido da criação de uma espécie de “elite humanista”. Os cidadãos seriam vistos como emancipados e participantes de uma dinâmica socialista e associativista, sem esquecer a sua dimensão criativa para a sua concretização. É este cooperativismo que está subjacente em toda a visão de Sérgio, que procura que todos tenham um papel de protagonismo na sociedade através das ações e comportamentos de cada um, com a consciência que pressupõe a sua liberdade e as implicações sociais existentes. Uma dinâmica de cooperação, em que as partes compõem o todo social, que organiza e sustenta a política e a pedagogia que Sérgio propõe e defende, e que não existe sem o espírito crítico histórico-cultural que compreende a realidade portuguesa. Dizia-se “apóstolo da vida cívica”, sentindo Deus como uma ideia ao alcance da consciência e do seu percurso.
A figura “intrometida” de António Sérgio manteve-se presente e viva no recinto da discussão filosófica e social em Portugal na primeira metade do século XX. Transcendiam-se as designações das políticas até se alcançar o mais básico e elementar da humanidade. Assim, o comportamento social na sua vida cívica era a premissa que mais colocava Sérgio em diálogo com os seus contemporâneos, mas também com aqueles que o antecederam, em especial com os grandes historiadores portugueses. Adaptou os contextos da sua nacionalidade àquilo que é a universalidade da individualidade, cruzou a psicologia e a sociologia no seu socialismo cooperativista e fez, por si só, um plano de atuação na sociedade portuguesa, com primazia na formação cívica e espiritual. É um plano ambicioso e até utópico, é certo, mas o tempo mantém viva a sua ideia e a sua visão. António Sérgio mantém-se, assim, mais do que incompreendido, incumprido; e a sua realização só caberá, precisamente, à vindoura educação.
“Quanto a mim parece-me que os males de que nos queixamos são fatalíssima consequência da estrutura da sociedade, – e que só portanto terão remédio se nos metermos firmemente a transformar essa estrutura, o que não é possível com pregações, nem com politica de autoritarismo, nem com reformas só pedagógicas, – mas com reformas sociais e pedagógicas concatenadas, entrelaçadas como fios de um tecido único, as quais preparem o nosso povo para o uso razoável da liberdade e para empreender por si mesmo a sua emancipação social-económica”.