O futuro do cinema nas garras do Rato Mickey?
Talvez muitos de vós (ou até mesmo todos) identificar-se-ão com isto: a minha infância e juventude foi forrada a filmes da Disney. Continua a ser bastante comum, de geração em geração, que o catálogo de animação da marca tenha sido visto e revisto vezes sem conta. No meu caso foi maioritariamente em VHS, num pequeno ecrã analógico que, hoje, é de uma dimensão ridícula para as grandes televisões que se pode ter em casa. Algumas das cassetes deixaram de funcionar com o passar dos anos com tanto visionamento – ou simplesmente porque eu as tinha estragado acidentalmente com as minhas próprias mãos. Ninguém é perfeito. Também li muita banda desenhada com os ratos e os patos, mas aqui confesso que, de facto, as histórias do Tio Patinhas (principalmente as de Carl Barks e Don Rosa) eram sempre as que me fascinavam mais.
Vi tudo, ou quase, desde as primeiras obras-primas dos estúdios do senhor Walt (ainda hoje considero “Pinóquio”, “Fantasia” ou “Branca de Neve e os 7 Anões” de uma qualidade insuperável) até às mais recentes produções em computador da Pixar, passando ainda por todos os outros períodos de maior ou menor glória do estúdio (não nos esqueçamos que, antes do ressurgimento lucrativo no final dos anos 80, com uma série de êxitos de bilheteira e maravilhas animadas, a Disney esteve em muito maus lençóis financeiros e artísticos). E é óbvio que a História do cinema de animação passa pela Disney, e que muitos dos seus filmes são imprescindíveis, e infiltraram-se de uma forma tão permanente que o nosso imaginário foi construído com aquelas imagens, como se a marca existisse quase como obrigação, desde tenra idade, nas nossas vidas.
Não posso, por isso, negar a importância da Disney no meu crescimento. Ao mesmo tempo, neste estranho 2020, ano de todos os perigos, só tenho sentido crescer uma enorme repulsa perante esse gigante do audiovisual.
Podeis perguntar: “então só agora é que acordaste para a vida e descobriste todos os esqueletos que a Disney guarda não muito discretamente no armário?” Esses até os conheço bem demais – e alguns deles estão numa sátira animada hilariante do “Saturday Night Live”, feita no tempo em que a grande estratégia da empresa era disponibilizar os seus filmes por tempo limitado para depois os guardar no “cofre”. Lembram-se disso?
Há muitos anos que a Disney é conhecida pela sua prepotência, as estratégias manhosas e passado sombrio e, nos últimos anos, as constantes tentativas para dominar o mundo com a supremacia da raça mickeyana. Mas o que me fez mais asco foi a compra da FOX. Foi a cereja no topo do bolo.
Isto já tem uns aninhos e também não é a primeira vez que, em Hollywood, se testemunham estas vendas bizarras. Em 1958, por exemplo, a Universal comprou uma boa parte do catálogo da Paramount (com o qual faz bom dinheiro em transmissões televisivas e no home video até hoje), e dez anos depois a mesma Paramount foi comprada por um aglomerado de empresas, a Gulf + Western. A MGM em 1924, ano em que foi fundada, não era mais do que uma fusão entre três companhias. E a própria 20th Century FOX foi criada com a junção de duas produtoras.
Não houve nada de novo, portanto, na aquisição dos estúdios e espólio da FOX pela casa do Tio Patinhas que, agora, parece tão ou mais gananciosa do que esse pato (terá o CEO da Disney uma caixa-forte com dinheiro?). O que me fez mais confusão – e ainda hoje é algo que me espanta de forma assombrosa – é que a grande razão para investir milhões e milhões de dólares nesse feito parece ser, somente, a obtenção factual de meia dúzia de propriedades intelectuais. Mais propriamente os seis filmes de “Star Wars” anteriores à nova trilogia e spin-ofs que a Disney começou a produzir após comprar a LucasFilm, as personagens da Marvel que a FOX detinha os direitos, e vá lá, uma meia dúzia de grandes êxitos de bilheteira (“Música no Coração”, a saga “Alien” e pouco mais). Ou seja, é como se os estimados leitores comprassem um palácio do século XVII com setenta e dois quartos divididos por quatro andares, recheado de móveis antiquíssimos e valiosos, só porque encontraram lá dentro uma mesa de cabeceira à qual acharam graça.
A Disney parece estar a fazer desaparecer o enormíssimo (e importantíssimo) espólio da FOX. Na plataforma de streaming Disney +, recentemente lançada entre nós, a dieta cinematográfica parece estar preenchida por alguns dos suspeitos que referi. Mas quanto às centenas de clássicos, do mudo ao sonoro, que esse estúdio produziu… nicles. Como as plataformas dos grandes estúdios não estão muito interessadas no seu vastíssimo catálogo, a única forma de ver muitos filmes clássicos da FOX ainda passa, legalmente falando, pelas edições em DVD e Blu-ray, que a Disney já informou que vai descontinuar. Para onde vão, então, décadas e décadas da História de Hollywood? Parece que para a gaveta. Sim, podem dizer-me que está em vista uma plataforma (a Star) que, segundo a Disney, servirá para “adult-oriented content” (ai, esta coisa dos “conteúdos”) que irá conter muitos filmes da FOX… mas imagino que o conceito “adulto” da Disney possa também passar por cinema mais contemporâneo e, quiçá, mais uma catrefada de séries relacionadas com as marcas para “miúdos”.
E isto é triste. É mais uma machadada no património do cinema, e mais um indicador que, por mais que o streaming esteja na moda e existam centenas de plataformas distintas, será, como sempre no que toca à indústria do entretenimento, só um ou dois jogadores a saírem vencedores desta luta incessante pela nossa atenção. A internet deu-nos um acesso incrível a informação e cultura, mas parece que, mesmo na imensidão do online, a estratégia antiga vai resultar: basta, com muito dinheiro, deitar abaixo toda a concorrência e ditar as regras do mercado pelos interesses do melhor bulldozer – a táctica que se criou com a hegemonia dos blockbusters, nos anos setenta, e se perpetuou, de forma crescentemente agressiva, até hoje. A única diferença é que é preciso mais dinheiro para conseguir reinar.
As plataformas mais populares de streaming desprezam os clássicos. As pessoas têm preconceitos (“Filmes a preto e branco? Ai não consigo”), mas também não há um interesse em alterar essas ideias erradas. Abram a Netflix e pesquisem por “classic”. É uma coisa algo masoquista que gosto de fazer de vez em quando. Ainda ontem as sugestões de clássicos que a plataforma me oferecia passavam por “Lawrence da Arábia”, “Sete Anos no Tibete” e um vídeo de uma hora com uma lareira a crepitar. Talvez seja demasiado cínico, mas acredito que este último é capaz de não ser o menos visto dos três.
Olho para a minha estante e vejo os grandes filmes da FOX que adoro: “My Darling Clementine”, de John Ford; “Cry of the City”, de Robert Siodmak; “All About Eve”, de Joseph L. Mankiewicz, só para citar três dos mais conhecidos. E vejo todos os outros que ainda não vi e que só estão disponíveis graças ao trabalho de marcas independentes como a Eureka, a Arrow e a Criterion. É pouco provável que nada disto esteja no streaming de massas, porque ele não se interessa por cinema, mas sim por consumo, conteúdos e popularidade. O futuro da memória de uma boa parte do cinema pode estar, num estranho paradoxo nesta era, nos mais recônditos cantos da pirataria. Não deixem que as novas gerações cresçam sem saber o que é um torrent! Pode ser útil da próxima vez que quiserem ver “The Hustler”, “Cluny Brown” ou “The French Connection”.
Este desabafo sobre a Disney vem também no seguimento de uma notícia recente, em que a marca assumiu que, de agora em diante, a sua prioridade será o streaming. Veremos o efeito que esta decisão terá no futuro. Será que os mega-espectáculos da Marvel, que custam 300 ou 400 milhões, podem ser compensados apenas pelas subscrições? E até quando é que as plataformas terão margem de manobra para resgatar os projectos que os estúdios lhes vendem (como é o caso de “Coming 2 America”)? mas, ao contrário de muita gente já acostumada a associar o que resta do cinema em sala à Disney e que vê nisto a morte definitiva do cinema, eu até encaro isto como uma boa notícia. Que bom a Disney abandonar as salas!
Pode ser uma oportunidade para todos os outros que querem obter um minuto de atenção de nós e que nunca conseguem, por não terem as ferramentas batoteiras do Mickey e dos outros gigantes. Seria o fim do reino disneyficado onde vivemos, ou pelo menos uma maior abertura dos espectadores a uma variedade de filmes e propostas. A quebra da asfixia que os conglomerados do entretenimento criaram, ao longo dos anos, para todos os que tentaram ter uma voz e nunca a conseguiram.
Talvez, nesta utopia cultural que eu estou aqui a magicar, uma pessoa normal poderá ir aos cinemas e não se deparar com uma oferta que se divide entre filmes da Marvel, filmes do Star Wars e filmes das outras vertentes Disney. Poderá ter algo mais. No ano em que se comemora o 125.º aniversário do cinema, vale a pena pensar um pouco no que queremos fazer dele,
E tendo em conta que a nossa existência neste planeta é breve e insignificante, pelo menos podemos preenchê-la com mais e diferentes filmes.