O génio do piano de Bill Evans
Bill Evans viveu pouco mais do que cinquenta anos, tendo nascido a 16 de agosto de 1929 e falecido a 15 de setembro de 1980. Porém, foi um dos pianistas mais avassaladores e inovadores do século XX, dotando do jazz de mais inovação e de um perfume impressionista. Apesar de ser um pianista de jazz, Evans teve uma formação clássica e cultivou a música erudita até conhecer George Russell e, em especial, Miles Davis. O mundo do jazz abriu-se para ele e dedicou-se a cultivar uma música com várias predominâncias tonais, dando-lhe variedade e imprevisibilidade. A sua liderança musical foi assumida após sair da banda de Davis e, daí em diante, foi liderando o seu trio, para além de compor um rol de músicas que abriu espaço para a eternidade do músico, que, ainda hoje, é relembrado com um sentido de genialidade.
Bill Evans aprendeu a tocar piano bem novo, com a professora Helen Leland, ao lado do seu irmão. Apesar deste se mostrar mais competente ao piano, Bill já lia partituras e já sabia algo sobre como tocar o violino e a flauta. Porém, insistiu no piano e nas peças de Mozart, de Beethoven e de Franz Schubert, para além de Igor Stravinsky e de Darius Milhaud, seus contemporâneos. Aos doze anos, começou a interessar-se pelo jazz e começou mesmo a tocar aos treze anos em pequenos eventos na sua cidade de New Jersey, tocando peças para casamentos e bailes. Depois de travar conhecimento com alguns músicos, foi explorando músicos, como o pianista Bud Powell, a sua referência ao nível do piano, os saxofonistas Coleman Hawkins e Stan Getz e Nat King Cole, que admirava particularmente.
Na Universidade do Sudeste de Louisiana, estudou interpretação de piano clássico e, lá, compôs as suas primeiras peças. Uma delas seria uma das mais importantes do seu repertório, “Peace Piece”. No seu recital final, tocou o Concerto para Piano nº 3, de Beethoven. Após concluir o seu curso, juntar-se-ia à banda do saxofonista Herbie Fields, do trompetista Jimmy Nottingham, do trombonista Frank Rosolino e do baixista Jim Aton, tendo acompanhado durante três meses uma tournée de Billie Holiday. Durante a sua breve passagem pelo exército, entre 1951 e 1954, apesar de ir tocando, foi perdendo a confiança depois de receber críticas em relação às suas composições e à sua forma de tocar piano. Não obstante, compôs a sua música mais célebre, “Waltz for Debby”, que viria a gravar em “New Jazz Conceptions” (1956), e que Bill compôs para a sua sobrinha.
Nesse ano, Scott LaFaro, como baixista, juntou-se a Paul Motian, baterista, e, juntos do pianista Bill Evans, formaram um dos trios com mais reputação no mundo do jazz: o Bill Evans Trio, que sofreria algumas transformações no futuro, mas que se fixaria no nome até à morte do pianista. Evans aproveitou esta liderança para poder investir nos velhos cânones do jazz e em composições originais, abrindo espaço para uma colaboração mais direta e capaz entre as partes envolvidas. “Portrait in Jazz” (1959) foi o primeiro reflexo dessa sintonia musical, embora com uma toada mais ritmada e agitada do que o usual, mas que já antevia esse entendimento harmónico. Fizeram a sua primeira tournée por importantes cidades do país e, numa dessas paragens, viram serem gravadas e ilegalmente lançadas algumas músicas que, postumamente, seriam conhecidas por “The 1960 Birdland Sessions” (2005).
Evans colaboraria em algumas performances do cantor Frank Minion, e seria o pianista do trombonista Kai Winding em “The Great Kai & J.J.” (1961, com o também trombonista J.J. Johnson) e “The Incredible Kai Winding Trombones” (lançado um ano antes), para além de ter estado no disco de George Russell “Jazz in the Space Age” (1960). 1961 seria um ano de imenso trabalho para o pianista, que ainda ajudaria o saxofonista Oliver Nelson em “The Blues and the Abstract Truth”. Primeiro, lançou “Explorations”, com o seu trio, onde se destaca a faixa “Nardis”, da sua composição, entre várias canções tradicionais do jazz. “Sunday at the Village Vanguard” foi uma gravação ao vivo reconhecida como uma das melhores de sempre no mundo do jazz, gravada no Village Underground, em Nova Iorque, e a última do baixista Scott LaFaro (compôs “Gloria’s Step” e “Jade’s Visions”), que morreria poucos dias depois, num acidente de viação,com somente 25 anos. LaFaro faria, ainda, parte de “Waltz for Debby”, um disco que reforça a importância dessa canção no seu repertório, concluindo um ano de excelência musical, mas sem esse brilho em tudo o resto.
Para o substituir, Evans chamou o amigo Chuck Israels, com quem, inicialmente, gravou “Nirvana” (1964, com a presença do flautista Herbie Mann) e “Undercurrent” (1962, com o guitarrista Jim Hall). Só com Motian e Israels, lançou “Moon Beams”, um conjunto de baladas, e “How My Heart Sings!”. Saltando de produtora, da Riverside para a mais comercial Verve, lançou aquele que lhe daria o seu primeiro Grammy: “Conversations with Myself” (1963), em que acumulou três camadas de piano em cada canção, algo bastante inovador à data. Apesar de sofrer de uma profunda dependência de heroína, que lhe tiraria a vida, Evans não deixava que esta interferisse no seu rígido método criativo e musical e continuou a trabalhar e a produzir álbuns. Em 1966, lançou “Bill Evans Trio with Symphony Orchestra”, onde foi acompanhado por uma orquestra conduzida por Claus Ogerman. Esta fase do trio contou com diferentes gravações ao vivo, muito delas bem-sucedidas, inclusivamente na Europa.
Em 1966, Bill Evans conheceria o seu futuro baixista, Eddie Gómez e levou-o consigo ao festival de Montreux de 1968, assim como ao baterista Jack DeJohnette. Com essa performance, arrecadaram o segundo Grammy do pianista, num concerto com laivos bem mais dissonantes e experimentais da habitual toada metódica e criteriosa do músico. Dois anos antes, também tinha ficado no ouvido “Intermodulation”, gravado com o guitarrista Jim Hall. Também em estúdio, gravou “Alone” (1968), agora a solo, que lhe permitiu conquistar o terceiro Grammy. Um novo baterista também tinha chegado para o trio, sendo ele o arrojado e enérgico Marty Morell, que só sairia sete anos depois, em 1975. Até lá, “From Left to Right” (1971) mostrava Bill Evans a tocar, pela primeira vez, um piano elétrico, um Fender-Rhodes; assim como “The Bill Evans Album”, composto, todo ele, por originais e que lhe deu dois Grammies, um para melhor solo instrumental e outro para melhor performance de um grupo. Para além destes, também “The Tokyo Concert” (1973, gravado no Yubin Chokin Hall), “Since We Met” (1974, uma outra performance no Village Vanguard) e “But Beautiful” (1974, com a presença do saxofonista Stan Getz, em performances na Holanda e na Bélgica). Depois da saída de Morell, Evans gravou com Gómez “Intuition” (1975) e “Montreux III” (1975, um novo concerto no festival suíço de Montreux).
Depois de profundas turbulências pessoais – Evans apaixonou-se por uma mulher enquanto estava comprometido e a sua companheira viria a suicidar-se -, o pianista colaborou com o cantor Tony Bennett em “The Tony Bennett/Bill Evans Album” (1975), tal como o fariam em “Together Again” (1977). Para o seu trio, mais uma entrada: o baterista Eliot Zigmund, que sentiria a maior improvisação de grupo e de harmonizações que Bill Evans incutiria em “I Will Say Goodbye” (1980, que levaria mais três Grammies) e em “You Must Believe in Spring” (álbum póstumo de 1980, naquela que seria a sua última sessão com Eddie Gómez, onze anos depois, e com Zigmund). Evans ainda convidaria o baixista Marc Johnson e o baterista Joe LaBarbera para o acompanharem no seu novo trio, atuando com eles em Montreux, no ano de 1978. O seu fim de vida seria profundamente atribulado, marcado pelo suicídio do seu irmão, aos 52 anos, após lhe ser detetada esquizofrenia. “We Will Meet Again” (1979) parece um prognóstico daquilo que se sucederia no ano seguinte. Triste e desiludido, Evans ainda levaria mais dois Grammies, em especial com a composição “I Will Say Goodbye”. E isso disse, quando partiu em 1980.
No plano meramente musical, Bill Evans foi um inovador por excelência, criando novas harmonias e novas formas de as comunicar. Inspirado pelo percurso impressionista dos franceses Claude Debussy e Maurice Ravel, empenhou-se em revestir de novas harmonizações muitas das canções que faziam parte dos cânones do jazz norte-americano, para além das suas próprias composições. Fez muitas modulações, para além de substituições de notas pouco casuais e de acréscimos de acordes, infletindo para o essencial e dando espaço para que o baixo pudesse aparecer. O pianista procura, assim, criar um autêntico idioma no qual o acorde, como uma qualidade ou uma cor, se molda em estruturas harmónicas que lhe permitam transitar de forma subtil, com um efeito de continuidade e de contraponto para com o baixo.
As suas improvisações procuravam, tanto melódica como ritmicamente, seguir motivos, podendo eles ser reconfigurados com um sentido de construção de novas melodias, ao sabor de deslocações rítmicas. Fazia-o com o sustento do seu toque e da independência que concedia aos seus dedos, atribuindo-lhes mais o peso com o passar dos anos. Evans fê-lo numa fase em que o jazz perdia protagonismo para outras expressões musicais, como o rock, e, apesar de ver o seu amigo Miles Davis fletir para uma toada mais funky (o jazz fusion), ele nunca o fez, mantendo-se orientado pelos princípios basilares da música jazz convencional. Não obstante, arriscou o piano elétrico, embora não se sentisse reconfortado por este, e, com isso, regressou ao seu clássico. Apesar de valorizar a sonoridade diferenciada que podia trazer, considerou que as vibrações eletrónicas trazidas para a música não lhe atraíam, assumindo que estas não eram do seu tempo.
Bill Evans é um dos pianistas de destaque e de proeminência do século XX. O seu trabalho consegue rejuvenescer o jazz para as novas gerações, embora este comece a perder o tal protagonismo que assumia na primeira metade do século. Mais do que as composições, são as transformações que o pianista opera perante o instrumento e as formas de o fazer comunicar. Para a história, fica esse percurso discográfico recheado de reconfigurações e de reinvenções, pensadas para o solo e para o conjunto, num sentido de criação plena. A música surge, assim, de forma simples, embora transformada, nessa harmonia entre humano e matéria. Bill Evans é um dos expoentes máximos dessa conjugação aperfeiçoada e afeiçoada do jazz e da música, nos seus mais belos acordes.