O grito de identidade das nossas artes
As artes interrelacionam-se todas entre si. A mística que percorre a essência de cada uma não é estranha às suas parceiras. São todas feitas do mesmo, isto é, são feitas do âmago mais generoso e mais prazeroso do ser humano. A vontade de verter para o mundo aquilo que milita nas entranhas do imaginário, que deseja ver repercutido no mundo físico e material, é imensa, tanto como partilha, como na mera condição de expressão.
Deixo um testemunho pessoal, um daqueles que experienciou arte de múltiplas formas, logo nos primeiros dois dias com uma nova idade. O primeiro recinto que visitei nesta nova fase foi o Museu Nacional Soares dos Reis. Para lá da exposição que seria, em consonância com a Fundação Calouste Gulbenkian, encetada e mostrada aos fãs deste modernista artista, ficou-se-me na retina a ampla e identitária coleção de peças pintadas e esculpidas, para lá dos pequenos objetos, reflexo de um trabalho importante e lusitano. As pinturas que refletiam os momentos históricos e as paisagens naturais, que perduram no imaginário a partir de tão consideráveis referências. São estes os ponteiros para os quais o relógio do coração se sente atraído, abraçando origens de ver versadas as projeções e conjeturas de uma realidade bem vivida.
A pintura que emanava essa fonte histórica deslocou-se por pincéis de vultos masculinos e femininos do país, capazes de retratar uma mundividência que perdura nos dias que correm. Nas calçadas pisadas, nas ruas onde as pedras se encaixaram, nas fartas avenidas que sobreviveram ao fustigar dos tempos. As impressões corroboram um lastro que nos liga aos dias dos nossos antepassados. As ligações vão-se reforçando e consolidando, acertadas e aprovadas com o passar das gerações. As cores, as texturas, as fibras desencadeadas pelo suave cantar das delicadas passagens pelo pincel resistem e reforçam-se, em especial com o novo convidado de honra, o tal que mistura muitas artes numa só: a arte de tão bem perdurar.
Pelo meio, e antes de se perspetivar toda a sua aura de moderno capaz, as esculturas. Os imponentes bustos, as magnificentes estátuas, onde o mármore, o bronze e a prata ganham vida autónoma. Os detalhes, as minúcias, as feições e condições aproximam-se grandiosamente da existência humana. Capacita-se a imobilidade de uma extraordinária vitalidade, que ombreia e concorre com muitos dos pesares que alcançam as toneladas. Uma densidade que se perscruta nas emoções emitidas pela posição e pela ambição erigida aos altos e baixos das perspetivas e volumetrias. Pontos de vista em contraposição com fogos de vista. A realidade ajusta-se e confere-se. Estão lá, palpáveis mas remetidas ao olhar atento e avaliativo, que bebe para o caudal emotivo da contemplação apreciativa.
Por fim, Almada, o tal que pôs o desenho em andamento, em movimento veloz e abalado. Um talento, um génio, um rasgo de seres que visita o Porto, trazendo consigo as notáveis armas do progresso: a expressão perpetuada através da escrita, não só de símbolos, mas de formas, de registos em ondas e mares, em que os naufrágios catapultam a transcendência do artista. Quem vê Almada, vê um afrontador, um homem de riscos a deambular em narrativas de substância, num arrojo artístico que se desprendeu de poucos braços. Um desnorteador que se virou para o Norte, desta feita, e até conquistar definitivamente os nortenhos, em especial os que não o conheciam.
Nortenhos, os tais já muito eles (nós) conquistados pela arquitetura. Perfumados por uma Escola com o nome da cidade Invicta, foi esta que viu Fernando Távora, Siza Vieira e Souto de Moura desenvolverem-se e desabrocharem do seu determinante talento para o mundo. É desta arquitetura que se pode saborear na cidade Matosinhos, na novíssima Casa da Arquitetura. É lá que se evidenciam vários dos traços daquilo que é esta expressão artística e a sua relação com os vários tipos de poder. Poder económico, social, político, cultural, tecnológico, dos media, ambiental, entre variados outros. A gama estende-se sem cessar, desdobrando a extensa relação da criação com o mundo onde esta se evidencia, onde esta se transforma e se vê adquirida e repleta de significados. Toda a arquitetura bebe deste funcionalismo, desta organicidade que potencia e rebusca o já usado, resultando, na fusão da perspetiva individual, numa idealização nova, renovada, adequada aos novos elãs dos contextos contemporâneos. Confrontos de forma com matéria, em que a dialética conseguiu escutar o espaço em consideração e em reconstrução.
A arte conta muitas histórias, e não só se expressa nos núcleos em que, implicitamente, se considera que os focos e os meios estão concentrados. As iniciativas surgem e vão-se alargando aos vários públicos, contando com a sua colaboração e compreensão. Almada Negreiros, que pairava nos seus íntimos trabalhos pela capital, subiu a Norte, com o desejo de conquistar as retinas e os laivos de criação daqueles que vinham olhando para fora de portas, ou para outros da sua região mais próxima, para se inspirar. Deste pintor, autor, narrador, ator, bailiarino, poeta, desenhador, não há muito que se possa segmentar e compartimentar. À imagem dos companheiros sobejamente conhecidos da Orpheu, sempre desejaram a totalidade dos seus préstimos ao mundo, na extrapolação da sua compreensão em plena expressão.
Da escultura de Soares dos Reis, da pintura de Silva Porto, do instinto polímata de Almada Negreiros, da arquitetura versada e comentada por Souto de Moura, o Norte viu-se completo e complementado por vozes da arte, que a valorizaram sem cessar. Entre eventos e iniciativas de congregação, aloja-se uma identidade própria, vinculativa ao desejo de diferenciar, de causar um impacto assertivo e assegurado nas lides portuenses, embora não só. Muitos são os esforços que se movem, que bradam à procura de uma plataforma de autenticação e de consolidação das suas veias únicas, diferenciadas das demais, num sistema circulatório estendido para quase 20 distritos. Cada um possui a sua história, a sua narrativa, de igual forma interessante às demais. Desde Viana a Faro, passando pelas ilhas, por Aveiro, Coimbra, Leiria, Setúbal. Todas elas transportam núcleos que não se tornam obtusos perante a chegada de convidados, com quem articulam o melhor dos mundos cruzados, em tantos e tantos caminhos gizados.