O interior do Homem é um mundo a descobrir. Ingmar Bergman foi um dos melhores nessa descoberta

por Lucas Brandão,    14 Julho, 2016
O interior do Homem é um mundo a descobrir. Ingmar Bergman foi um dos melhores nessa descoberta

Ingmar Bergman foi um dos maiores cineastas de todos os tempos. Ladeado por nomes como Federico Fellini, Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovsky ou Jean-Luc Godard. O cineasta sueco escolheu ser virtuoso e irreverente no seu modo de fazer cinema, não se agarrou a preceitos nem complicou preconceitos. Investigou-os, tentou compreendê-los, abordou-os. Destes se fez arte e filosofia. Tudo isto versado numa tela de cinema e nas suas dezenas de produções, para além das adaptações em contexto cénico. Questionou-se com assinalável retórica visual. Articulou-se com a dimensão do sonho pensante. Realizou-se com uma obra que se compreende numa introspeção constante e exultante. Desde a doença até à morte, passando pela loucura e pela traição, é este o canto cinematográfico de Ingmar Bergman.

Ernst Ingmar Bergman nasceu a 14 de julho de 1918 em Uppsala, Suécia. Filho de um pai luterano e de uma enfermeira, Ingmar cresceu rodeado pelos seus dois irmãos e por um acérrimo contexto religioso. Nesse conservadorismo, era castigado de forma severa por disparates típicos dos tempos de criança, acabando por vezes fechado em locais escuros. De imaginação fértil, a criança aproveita as ausências do seu progenitor para se deter com a falta de limites da metafísica da religião, entregando-se a cenários que viria a representar numa tela animada. Contudo, quando chega aos 8 anos entrega-se ao mundo do teatro e do cinema logo no ano seguinte, dando largas à sua imaginação com uma lanterna e efeitos de luz personalizados e com as marionetas elaboradas por si.

Era neste registo que se entregava à representação de algumas das peças de August Strindberg, autor, dramaturgo e seu compatriota. Em 1934, e com 14 anos, BergmanAdolf Hitler num cortejo deste em Weimar, estando durante alguns anos deslumbrado com o seu carisma e com a vivacidade da sua armada. Com 17 anos, ingressa na Universidade de Estocolmo para estudar arte e literatura mas entrega-se com devoção ao trabalho cénico desenvolvido nessa instituição e torna-se num cinéfilo consolidado. Apesar de não se ter licenciado, escreveu várias peças e até uma ópera. Em 1942, dirige o seu primeiro trabalho cénico, de nome “Caspar’s Death“, cativando vários membros da companhia de produção cinematográfica Svenski Filmindustri e com esta a oferecer-lhe um posto como argumentista. Garantida a estabilidade profissional, Bergman casa-se com Else Fisher e dá início a uma agitada vida emocional, contando esta com vários casos e divórcios.

Com esta oportunidade, o sueco assegura um trampolim através da escrita do argumento de “Torment” (1944), orientado pelo cineasta Alf Sjöberg. O filme consistia num amor que se via condicionado por um professor de Latim que era cáustico com a figura masculina, que era seu aluno, e que maltratava a figura feminina, sua companheira conjugal. Este trabalho revelava desde logo uma irreverência que fazia parte do estilo do realizador, abordando temáticas como o homicídio, a paixão e os seus limites com uma subtileza salutar. O prestígio internacional granjeado por este trabalho lançaria a carreira do sueco a solo, dirigindo mais de uma dezena de filmes na década seguinte. Entre eles, notabilizam-se “Prison” (1949), “Sawdust and Tinsel” (1953) e “Summer with Monika” (1953). O primeiro retrata a diabolização do planeta Terra, enquanto que o segundo enreda uma trupe de um circo no qual se misturam relações e onde emana o ciúme e a complexidade da relação humana. Já o terceiro, célebre pela controvérsia que cenas de nudez viriam a causar, lançou para a ribalta a atriz Harriet Andersson e conta uma típica relação de verão da qual se destacam os espíritos abertos e aventureiros mas também as consequências que podem daí advir.

“When we experience a film, we consciously prime ourselves for illusion. Putting aside will and intellect, we make way for it in our imagination. The sequence of pictures plays directly on our feelings.”

As nomeações para galardões internacionais estariam aí ao virar da esquina, mais concretamente em 1955, fruto de “Smiles of a Summer Night“. Neste, o contexto remonta para o século XIX e retrata, a partir de um casal, os pudores relativos às relações promíscuas e questões sobre a virgindade são acionadas para a reflexão, para além do habitual ciúme, desta feita nutrido pelo protagonista. Por sua vez, este foi seguido por “The Seventh Seal” (1957) e “Wild Strawberries” (1957). O primeiro decorre na época medieval e contempla noções bíblicas e metafísicas, contemplando até a conotada personagem da Morte, esta que joga xadrez com aquele que vinha buscar, Antonius Block (interpretado por Max von Sydow) o protagonista da trama. Este trata-se de um dos trabalhos mais notáveis da carreira do realizador e transporta muitas das suas memórias de infância, relembrando a densa influência religiosa do seu pai. Por esta altura, o realizador vinha orientando de forma paralela peças de dramaturgos como William Shakespeare, Albert Camus, Molière ou Tennessee Williams. Já o segundo filme mencionado destaca-se pelo seu argumento ter sido escrito enquanto Bergman estava hospitalizado. Problematizando a existência humana e reforçando a premissa introspetiva nessa consideração, o trabalho contempla um professor e investigador prestes a ser jubilado e disseca o seu passado, não sendo alheio a quaisquer turbulências no qual tenham ocorrido. O sueco começava a evidenciar-se como um psicólogo em pesquisa durante as realizações que fazia, transpondo a mera transposição do pensamento para o grande ecrã.

Na década de sessenta, é composta uma espécie de trilogia, pondo-se a tónica na discussão da fé e no que esta realmente consiste, interpelando também a existência de Deus ou de uma figura divina superior da qual tudo estava subjacente. “Through a Glass Darkly” (1961), “Winter Light” (1962) e “The Silence” (1963) traduziam esse estado perscrutador do sueco aliado com a expressão do que lhe inquietava. Para além de uma paródia à obra “8 ½” do italiano Federico Fellini (“All These Woman“, (1964)), salta ao alcance do material uma das suas maiores produções. É esta “Persona“, de 1966, um dos maiores dramas psicológicos de todos os tempos. Bibi Andersson e Liv Ullman são as musas de Bergman e que interpretam mais uma das suas análises artísticas. Perante uma enfermeira e uma atriz que emudece de forma súbita, o sueco traça uma meticulosa linha pela qual o filme é conduzido e na qual está a alma humana e o impacto do passado na sua expressão. Os sentimentos que inicialmente aparentam ser divergentes entre ambas acabam por se cruzar numa introspeção coletiva em que quem fica a ganhar é o sujeito que se fascina pela diversidade de rotas que o espírito humano pode seguir.

“I want very much to tell, to talk about, the wholeness inside every human being. It’s a strange thing that every human being has a sort of dignity or wholeness in him, and out of that develops relationships to other human beings, tensions, misunderstandings, tenderness, coming in contact, touching and being touched, the cutting off of a contact and what happens then.”

Os últimos grandes trabalhos cinematográficos do sueco valeram-lhe vastas e consideráveis menções no panorama artístico. “The Virgin Spring” (1960), valeu-lhe um Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, não obstante gerar polémica por expor uma cena explícita de violação. Para além desta temática, também os valores morais são colocados em questão, assim como a (falta de) justiça advinda destes e da religião. Por sua vez, “Hour of the Wolf” (1968) expõe um esgotamento de um artista quando posto em confronto com os seus desejos reprimidos. Outras produções que ficaram célebres por circunstâncias complementares à ação do trama foram “The Magic Flute” (1975), sendo o primeiro filme destinado somente para televisão e com uma banda sonora em estéreo, e “The Serpent’s Egg” (1977), única produção de Bergman distribuída por Hollywood.

As duas últimas realizações de destaque foram “Autumn Sonata” (1978) e “Fanny and Alexander” (1982). A primeira contou com a ilustre atriz Ingrid Bergman, homónima do realizador e na sua última interpretação de vulto. Tratando-se também do derradeiro filme destinado para o cinema, o sueco coloca Ingmar como uma pianista prestigiada que é convidada pela sua filha a uma visita à cidade desta, sem mencionar que hospedava em sua casa a sua irmã paralisada e confinada a uma cadeira de rodas. Igual a si mesmo, o cineasta disserta sobre a atribulação do caráter humano e a influência do passado no comportamento e na relação estabelecida com os outros. Já no trabalho dos anos 80, este originalmente fora construído como um conjunto de quatro partes e que juntas constituem um dos maiores até à data (5 horas e 12 minutos). O enredo assume como contexto a cidade que viu nascer e crescer o realizador e é baseado grosso modo na sua e na infância da sua irmã, com as suas personificações a acompanharem as mexidas no seio familiar e nos seus arredores. Pelo meio, deixou também uma série de nome “Scenes from a Marriage” (1973), na qual regista a desintegração de um casal entre uma advogada e um professor. Os monólogos velozes, os repentinos close-ups e o estilo de filmagem e de representação inteiramente naturalista e realista conferiram um pendor inovador e inspirador para os sucessivos realizadores.

“In this profession, I always admire people who are going on, who have a sort of idea and, however crazy it is, are putting it through; they are putting people and things together, and they make something. I always admire this.”

Na sua carreira no teatro, tornou-se de forma galopante diretor do teatro de Helsingborg e seguidamente do de Gotemburgo e também do de Malmoe, ambos na Suécia. Vários dos atores com quem trabalhou na sétima arte e a partir dos quais estabeleceu um elenco-base foram recrutados em trabalhos desenvolvidos nesses teatros, especialmente em Malmoe. Nos anos 60, assumiu as rédeas do Royal Dramatic Theatre na capital do seu país, Estocolmo. No entanto, e aquando da sua detenção por evasão fiscal em 1976, não só no país escandinavo se pôde contemplar o dedo de Bergman, com o Residenz Theatre de Munique, Alemanha, a ser dirigido por este. Porém, e como consequência desta acusação, o cineasta entrou numa depressão profunda e foi hospitalizado. O seu regresso não se sentiu de forma tão premente, embora o seu legado estivesse já consolidado. Com 89 anos, a 30 de julho de 2007, partiu durante o seu sono de forma a encontrar respostas para o existencialismo físico e metafísico que assumiu desde sempre como seu.

Para além de uma lufada de ar fresco, Ingmar Bergman trouxe algo mais ao cinema. Trouxe a irreverência e a atitude despudorada que era necessária para que os tabus deixassem de ser uma permanente na crítica de uma obra cinematográfica. O paradigma foi alterado e muito por via deste cineasta europeu. Investindo pouco no seu trabalho, conseguiu desenvolver uma obra que compilou muitas ideias explanadas em diversos livros existencialistas. No entanto, não prescindia de uma redação criteriosa e ciosa dos seus argumentos, apesar de se ir tornando flexível à espontaneidade dos seus atores. Fiel estudante da espécie humana e da sua pluridimensionalidade, o sueco abriu um livro de imagens relacionadas entre si e que exprimiram com delicadeza mas firmeza as suas interrogações perante o giratório mas estanque planeta.

Foram mais as questões que deixaram por ser respondidas do que aquelas que tiveram sustentada réplica. Bergman propôs e pouco deixou por ser dito no que toca às suas equações e convicções. Muitas sem resultado, outras por serem resolvidas. No fim, um mote para um exercício. Para que o ser humano seja contemplado não com a simplicidade de outrora mas avaliando o que salta à vista da sua complexidade. O exercício de questionar, de problematizar, de interrogar. O exercício de sentir a dor dessa complexidade como extensível e replicável a cada um. O exercício de tentar responder sobre o sentido da vida e do ser humano. Da mente e do seu ofício como sentinela para o rosto da tela. Quis Bergman e assim foi feito. De si se gerou uma nova senda e em si se construiu lenda.

“The manifestation of sex is very important, and particularly to me, for above all, I don’t want to make merely intellectual films. I want audiences to feel, to sense my films. This to me is much more important than their understanding them.”

https://www.youtube.com/watch?v=JFQtlSvdWxQ

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