O (ir)regular funcionamento das instituições
Na última semana vivenciámos uma crise de confiança política como a nossa geração não tem memória. Na terça-feira ligámos as televisões para ouvir o Presidente da República garantir que a não demissão de João Galamba era inconsequente, que o uso do SIS era indevido e podia mesmo ser ilegal, mas que na opinião do Presidente tudo se mantinha inalterado. Confusos? É natural. Não foram os únicos.
Ao contrário do que os consultores de comunicação contratados pelo Partido Socialista possam achar, eu não considero que os portugueses se estejam a borrifar para o estado das instituições portuguesas. É perfeitamente possível ter em mente o custo de vida, a degradação social e os brilharetes económicos de folha de excel que não chegam à mesa de jantar, e não apreciar ouvir no telejornal que os Serviços de Informação e Segurança foram acionados indevidamente para ir recuperar um computador a casa de um assessor que alegadamente terá arremessado uma bicicleta contra as paredes do ministério.
De facto, precisaria de bem mais do que um texto para explicar como aqui chegámos, e por isso vou tentar resumir os pontos chave desta escaramuça. A Comissão de Inquérito à TAP pediu notas da reunião do Ministério das Infraestruturas com a ex-CEO da TAP e deputados socialistas, reunião essa que foi negada e renegada vezes sem conta, primeiro sobre a sua existência, depois sobre quem a teria marcado, e por fim sobre o seu conteúdo. Embora a versão que o Ministério tinha preparado garantisse que não existiam notas, Frederico Pinheiro complicou as coisas ao afirmar que não só as tinha, como já tinha informado a Chefe de Gabinete de João Galamba sobre as mesmas. Tudo descamba a partir daí.
“A constante conversa de Marcelo sobre dissolução é só isso mesmo, conversa. Temos um país com um Presidente da República politicamente na mão do Primeiro-Ministro.”
No interregno da telenovela, acho relevante reforçar que as notas descrevem uma intenção de coordenação de perguntas e respostas entre Carlos Pereira, deputado do Partido Socialista presente na Comissão de Inquérito, e a ex-CEO da TAP. Vamos pensar sobre isto devagarinho, e tendo em mente que este deputado negou várias vezes o teor da reunião, e quem a tinha marcado. Chocado? Há pior.
No dia em que Frederico Pinheiro foi ao Ministério das Infraestruturas recuperar o seu computador de trabalho, com informação classificada que ele próprio pediu para classificar, os Serviços de Informação e Segurança foram acionados para recuperar o computador, e aqui começa a morte política de João Galamba. O SIS não é uma polícia, e não está à mercê de um ministério ou de um ministro para uso a seu bel-prazer. A alegação do receio que o assessor, mantido e renovado por João Galamba consecutivamente, colocasse em risco o Estado português com a informação com a qual trabalhou anos é manifestamente infundada, e mesmo a ser real, justificaria uma chamada à PJ, e não ao SIS.
Lamento dizê-lo, mas sob nenhuma circunstância faz sentido duas assessoras e a chefe de gabinete tentarem fisicamente reter o computador no ministério, contra Frederico Pinheiro, que descreveram como descontrolado. É também muito interessante ler todas as peças que saíram na última semana sobre o adjunto, em que até alegações de que era violento com colegas desde a altura em que era jornalista na RTP vieram à tona. Frederico Pinheiro percorreu a escada dos cargos de confiança política do Partido Socialista. É amigo pessoal de Pedro Nuno Santos e foi reconduzido por Galamba. É ternurento ver que tal como mulher de César, só passado este tempo todo é que se tornou desprezível.
No mesmo dia em que João Galamba apresenta a sua demissão ao Primeiro-Ministro, e tornando-se claro para toda a gente que mantê-lo com a possibilidade de se perceber que a atuação do SIS foi ilegal seria um erro crasso, António Costa faz um discurso ao país em que se compromete com João Galamba e a sua narrativa. Colocando de parte o cinismo político de apresentar uma demissão que sabia que não seria aceite, António Costa pretendeu mostrar a Marcelo Rebelo de Sousa que no seu governo manda ele.
Bom, e eis que passado alguns dias e três bolas de gelado Santini Marcelo fala ao país. Levanta a suspeita de que o SIS é usado indevidamente, sustenta que o ministro não tem condições de se manter, considera a decisão do primeiro-ministro uma irresponsabilidade, e conclui que o melhor é deixar tudo como está. A defesa da estabilidade como um fim nela mesma, algo que Marcelo acabou por fazer, é uma posição política que remove ao Presidente a capacidade de poder vir a ter um último mandato com iniciativa política. De facto, levantar a necessidade de aplicação correta do PRR como argumento para nem dissolver o parlamento, nem exigir uma remodelação do executivo, dado que 78% da componente pública do PRR ficou por executar em 2022, permite que se de facto decidir uma destas duas hipóteses seja sempre confrontado com o que já podia ter feito, e não fez.
É perfeitamente compreensível o racional tático por detrás da não dissolução da Assembleia da República. Os dois cenários mais prováveis seriam o PS ganhar com uma maioria ainda mais expressiva, ou a direita chegar ao poder com a extrema-direita atrelada. António Costa sabe isso. Por isso mesmo manteve o ministro: a constante conversa de Marcelo sobre dissolução é só isso mesmo, conversa. Temos um país com um Presidente da República politicamente na mão do Primeiro-Ministro.
Contudo, existe uma ressalva relevante. Ao manter João Galamba, António Costa compromete-se com este e a sua narrativa. Na passada quarta-feira ouvimos Frederico Pinheiro na Assembleia da República, seguido pela Chefe de Gabinete de João Galamba, e por fim pelo próprio ministro. Até agora, temos quatro versões diferentes sobre o uso do SIS. Tanto a adjunta, como o ministro, como o Primeiro Ministro citam um crime de roubo quando Frederico Pinheiro levou o computador, desmentidos pelo Conselho de Fiscalização do SIRP.
Não conseguimos chegar ao fundo da verdade neste ponto, mas uma coisa sabemos. No momento em que se falou de crime, o uso do SIS foi ilegal. Se isso se comprovar, e outras alegações que o assessor fez, tais como receber um telefonema do SIS indicando que existiam “ordens desde cima” para recolher o computador, não é Galamba que tem de cair, é o próprio primeiro-ministro. E disto, nem o otimismo crónico de António Costa o pode salvar.