O ‘LeV-Literatura em Viagem’ não foi em cantigas e venceu de goleada

por Mário Rufino,    19 Maio, 2017
O ‘LeV-Literatura em Viagem’ não foi em cantigas e venceu de goleada
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A 11ª edição do “LeV-Literatura em Viagem”, que decorreu entre 12 e 14 de Maio, enfrentou desafios inauditos.
Estavam reunidas as condições para que tudo corresse muito mal. Mas isso não aconteceu. A Galeria Municipal de Matosinhos encheu-se de público para assistir a conversas e entrevistas, num fim-de-semana em que Portugal foi visitado pelo Papa, consagrou o Benfica como tetracampeão nacional e teve o seu primeiro vencedor da Eurovisão. A Comunidade Cultura e Arte acompanhou o primeiro e o segundo dia do “LeV ”.

No “hall” de entrada do Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos, David Mitchell, que iria ser entrevistado no último dia do festival, demonstrava a sua curiosidade por tudo o que é português. Queria saber ditados populares, gastronomia, desporto, religião e até o que pensávamos sobre o Festival da Eurovisão. Divertiu-se com as traduções de ditados como “dar a tanga”, “para baixo todos os santos ajudam”, “fia-te na virgem e não corras”.
O autor inglês demonstrou a curiosidade dos viajantes interessados em conhecer o Outro, sem ocupar tempo a falar de si ou do seu livro mais conhecido. “Atlas das Nuvens” é um exemplo literário de universos paralelos, viagens no tempo e imaginação. Temas que fundamentaram “Einstein, viagens e literatura”, tema da Conferência de Abertura, proferida por Carlos Fiolhais, no Salão Nobre.


Nas suas longas e diversas viagens, Einstein teve muito tempo para ler. A velocidade era mais lenta, “mais civilizada”. O interesse do físico alemão incidiu, principalmente, sobre o cânone, que viria a ser debatido por Rachel Cusk e Tânia Ganho. Os seus conhecimentos pessoais incluíam escritores como Thomas Mann ou Rabindranath Tagore. Nessa intíma ligação com a literatura, as teorias de Einstein viriam a ser decisivas em alguns autores:
No romance, Musil, Proust, Durrell ou Joyce redefiniram o tempo após as descobertas do Nobel da física. Para o Teatro, Friedrich Durrenmatt escreveu “Os Físicos”, em que Einstein é nome de um personagem; na pintura, segundo Fiolhais, Picasso utilizou um espaço temporal para cada uma das figuras de alguns dos seus quadros.
As teorias sobre a relatividade afectaram a noção de tempo. As viagens passaram a ser teorizadas não só como deslocações geográficas, mas também como possíveis no tempo.


Para Hélia Correia, a História não pode andar para trás, mas andou muito mal para a frente.
A autora de “Adoecer”, que assistiu à conferência de Carlos Fiolhais no dia anterior, conversou com Frederico Lourenço, Prémio Pessoa 2016, e Tito Couto (moderador) sobre “Tempos Difíceis – das páginas de Homero à Europa em desagregação”.
Hélia Correia expressou admiração por Frederico Lourenço e afirmou que a oportunidade de conversar com o tradutor de livros canónicos como “A Bíblia”, “Odisseia” e “Ilíada” foi a principal razão de ter aceitado participar num festival.
A utilidade dos gregos antigos não existe, pois não é essa a sua função, respondeu a autora a uma pergunta de Tito Couto. Volta-se aos gregos para se reencontrar a beleza e para se voltar ao rasgar da noite da humanidade.
“A Terceira Miséria”, livro muito ligado à Grécia, tem um tom elegíaco, influenciado pelos poemas de tristeza, perda e lamentação. “Vivemos séculos de perda organizada”, afirmou.
“As luzes estão a apagar-se cada vez mais”, afirmou Frederico Lourenço referindo-se a esta perda.
Temos que recuperar o pensamento crítico dos gregos, além de questionarmos tudo, para contrariar esta época de obscurantismo.

Os autores escolhidos por Einstein, os referidos por Hélia Correia e Frederico Lourenço e aqueles que são estudados nas escolas e universidades demonstram que o cânone é composto maioritariamente por homens.
Tânia Ganho, autora de “A Mulher-Casa” e tradutora de “Arlington Park”, de Rachel Cusk, acrescentou mais uma característica: o cânone é eurocêntrico. Em conversa com a autora canadiana, Tânia Ganho diagnosticou muitas limitações à definição de cânone, colocando aspas em verdadeiro autor e verdadeiro cânone. A literatura vai-se actualizando. Lendo só os clássicos seria impossível ler autores mais recentes. Os clássicos estão sempre presentes, seja na forma, no tema ou no léxico. Palavras como “yahoo”, de “As Viagens de Gulliver”, escrito por Jonathan Swift, ou “quixotesco”, com referência a “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, são utilizados no registo popular ou familiar. Não é só o cânone que tem de ser actualizado de forma a ser menos eurocêntrico e masculino; o ensino da literatura deve mudar para que os alunos se vinculem à leitura. Essa mudança implica paixão, debate e pensamento, sem cair na simplificação.
Rachel Cusk também defendeu que a omnipresença dos clássicos na literatura contemporânea, mesmo daqueles de que não gostamos, é evidente. A autora de “Contraluz”, sobre quem falaremos noutra peça, transgrediu os ditames canónicos numa adaptação sua de Medeia. A reacção dos críticos não foi a mais pacífica.
Em dia de Hélia Correia, Frederico Lourenço, Tânia Ganho e Rachel Cusk, as “new voices” de Árpád Kollár, poeta sérvio, e Juana Adcock, poeta mexicana, foram novidade para quem teve oportunidade de as ouvir.
“Retratos de Siza” não contou com a presença do mais premiado arquitecto português, mas tal não impediu que o público viesse a conhecer melhor o arquitecto Álvaro Siza Vieira através da voz e da escrita de Valdemar Cruz. No fim do dia, o contraponto: Rodrigo Guedes Carvalho apresentou, em “Entrevista de Vida”, o seu novo livro:
“O Pianista de Hotel”.


Provavelmente por ser em simultâneo com a final da Eurovisão, o autor/jornalista português teve a sala mais desocupada desses dois dias de festival. No dia seguinte-e último do LeV- o público pode assistir à entrevista de David Mitchell à dupla Tito Couto/Pedro Vieira e ao debate entre Abraão Vicente e José Manuel Fajardo, com moderação de Isabel Rio Novo, sobre “Afinal, o que a Europa de Especial?”. Ainda nesse dia, Jesús Carrasco, Xavi Ayén e Karla Suárez (moderadora) conversaram sobre “Quantas mais nações cabem na Europa – um continente com várias expressões literárias?”.
Os três dias de LeV foram preenchidos por visitas a escolas, exposições de fotografia de Rui Loureiro e de Ricardo Fonseca, pintura ao vivo por Lord Mantraste e mesas de debate. E foi precisamente com um debate que o LeV encerrou a 11º edição. Francisco José Viegas, João Tordo e Hélder Gomes (moderador) conversaram sobre “Serão as notícias da morte da Europa exageradas? E da Literatura?”.
O “LeV-literatura em viagem” deu prova de vida num fim-de-semana difícil para qualquer acontecimento além futebol, Fátima e música.

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