“O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano: o quebrar das barreiras da escrita autobiográfica
Eduardo Galeano (1940-2015) foi um jornalista e escritor, apaixonado por futebol, que nos explica a América Latina e o mundo. Em “O Livro dos Abraços” (1989) construiu um aglomerado de curtos pedaços narrativos, que despertam uma percepção recorrente de realismo mágico ao longo da leitura. Estes fragmentos literários estão intimamente ligados entre si e são um reflexo do riquíssimo mundo pessoal e criativo do autor, que foi escritor, jornalista, exilado político, entre outras coisas.
Galeano empresta a própria vida à sua escrita e colhe os frutos dessa relação íntima, produz passagens de extrema beleza poética ao longo deste livro, das quais destaco:
A UVA E O VINHO
Um homem das vinhas falou, em agonia, ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou-lhe o seu segredo: – A uva – sussurrou-lhe – é feita de vinho.
Quando Marcela Pérez-Silva mo contou, pensei: se a uva é feita de vinho, talvez nós sejamos as palavras que contam o que somos.
“O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano
Estes pedaços de narrativa delineados por Galeano, envolvem-se e confundem-se numa viagem literária que quebra as barreiras da escrita autobiográfica, dos sonhos, das lendas populares e do simbolismo das palavras (e das imagens que a elas associamos). Produz uma espécie de “collage” narrativa, onde nem sempre vamos parar à conclusão que seria expectável.
OS ZÉS-NINGUÉM
Sonham as pulgas comprar um cão e sonham os zés-ninguém sair da pobreza, que num dia mágico chova a sorte de repente, chova a sorte a cântaros; mas a sorte não chove nem ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem em chuvinha cai a sorte do céu, por mais que os zés-ninguém a chamem, ou que lhes comiche a mão esquerda, ou que se levantem com o pé direito, ou que comecem o ano trocando de vassoura.
Os zés-ninguém: os filhos de ninguém, os donos de nada.
“O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano
Os zés-ninguém: os nenhuns, os ignorados, apertando o cinto, morrendo a vida, fodidos, fodidíssimos.
Que não são, embora sejam.
Que não falam línguas, mas dialectos.
Que não professam religiões, mas superstições.
Que não fazem arte, mas artesanato.
Que não praticam cultura, mas folclore.
Que não são seres humanos, mas recursos humanos.
Que não têm cara, mas braços.
Que não têm nome, mas número.
Que não figuram na história universal, mas nos casos do dia da imprensa local.
Os zés-ninguém, que custam menos do que a bala que os mata.
Neste “Os Zés-Ninguém” assume a defesa dos “sem voz”, dando visibilidade literária e política aos esquecidos da(s) sociedade(s). O autor volta de forma recorrente a este tema, retirando a maioria pobre do papel secundário ao qual foi destinado.
Fica evidente a forma como Eduardo Galeano convoca a si a escrita viva, mutável, colorida, de humor sarcástico e mordaz que associamos (muitas vezes) à literatura sul-americana. Como o autor nunca se prendeu a uma única ocupação, consegue inserir nas pequenas narrativas as mais diversas temáticas que lhe interessam, quer seja pelo conteúdo ou pelo estilo, tais como: política, justiça social, relações, futebol, revoluções e ditaduras, entre outros. É uma excelente obra de introdução à sua escrita, mas também será uma leitura especialmente agradável para quem seja ávido consumidor da escrita proveniente da América-Latina.