Jorge Luis Borges apresentou um mundo inteiro à própria literatura

por Lucas Brandão,    17 Maio, 2017
Jorge Luis Borges apresentou um mundo inteiro à própria literatura
Jorge Luis Borges, em 1951 / Fotografia de Grete Stern
PUB

Jorge Luis Borges apresentou um mundo à própria literatura. O argentino contemplou-a com um registo que deambula entre a filosofia e a fantasia, não esquecendo o lirismo poético, e o rigor ensaísta académico. A sua grande peculiaridade mora nas diferentes relações estabelecidas entre os constituintes da sua extensa obra, navegando por um realismo mágico, que desafia os então proeminentes realismo e naturalismo. O períplo de lugares que conheceu e onde viveu contribuiu para ampliar o imaginário e o espectro de ideias e de impressões condensado por este professor de profissão, que foi cada vez mais estimulado consoante perdia a visão. Borges foi, desta feita, uma das figuras que partiu na linha da frente da promoção da literatura sul-americana, que se relançou nas lides fantásticas mas socialmente pertinentes ao lado do seu compatriota Julio Cortázar, e do colombiano Gabriel García-Márquez.

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo nasceu no dia 24 de agosto de 1899 em Buenos Aires, no seio de uma família de classe média-baixa. A sua mãe tinha origens uruguaianas, tendo grande parte dos seus ascendentes sido participantes na Guerra da Independência Argentina. Aliás, o seu avô materno, Isidoro de Acevedo, foi transposto para o seu livro de poemas de 1929, de título “Cuaderno San Martín“. O seu pai, advogado e aspirante escritor, possuía uma ascendência vária, com ramos portugueses, espanhóis, e ingleses. A sua irmã, Norah, tornar-se-ia numa pintora de renome nacional.

Com somente nove anos, o rapaz traduziu o conto “The Happy Prince”, de “The Happy Prince and Other Tales” (1888), obra do irlandês Oscar Wilde, para o idioma espanhol. Bilingue em inglês e espanhol, herdou a aspiração literária do seu progenitor, que falhou na prossecução de uma carreira nessa área, e não tanto a agilidade e a disposição para a ação do seu lado materno. Com doze anos, leu William Shakespeare no meio de uma biblioteca de língua inglesa, numa casa onde viveu, composta por mais de mil unidades. Com o seu pai a ver a sua visão condicionada, à imagem daquilo que viria a acontecer com Jorge, e de, por isso, deixar de praticar advocacia, a família passou a década de 20 na Europa, vivendo, inicialmente, em Genebra, na Suíça. Neste lugar, onde o seu progenitor foi tratado, o futuro escritor e a sua irmã familiarizaram-se com o francês, tendo o primeiro conhecido a obra de Thomas Carlyle, e a filosofia alemã, com a qual privou na própria língua germânica. Após findar os estudos no Collège de Genève, e perante a realidade instável do seu país-natal, o agregado familiar viveu na Suíça até 1921, já no pós-guerra, tendo, depois, habitado em Barcelona, Palma de Maiorca, Sevilha, e Madrid.

Neste período nómada, o argentino descobriu a filosofia de Arthur Schopenhauer, e uma obra que se tornaria proeminente e influente no seu corpo de influências, sendo esta “The Golem” (1915), do ficcionista sobrenatural austríaco Gustav Meyrink. Quando conheceu Espanha, o jovem apaixonou-se pelo país, e afiliou-se ao movimento literário ultraísta, que, inspirado pelo francês Guillaume Apollinaire, e pelo italiano Filippo Marinetti, era anti-modernista. O primeiro poema da autoria de Borges foi escrito nesta altura (“Hymn to the Sea”, com algumas semelhanças ao registo poético de Walt Whitman), que privou com os autores Ramón Gomez de la Serna e Rafael Cansinos Assens.

De regresso ao seu país de nascimento em 1921, trouxe uma educação elementar e poucos amigos firmados do continente europeu, para além dos laivos surrealistas, que foi introduzindo na sua poesia, e do interesse por redigir textos para jornais literários. Dois anos depois de chegar, lançou a coletânea de poemas “Fervor de Buenos Aires” (1923), e fez parte da fundação de uma pequena iniciativa literária, que consistia em vários textos afixados nas paredes da capital argentina (designada “Prisma“), para além de um outro periódico – “Proa“. Arrependendo-se, pouco depois, destas empreitadas, continuou a explorar diversas questões filosóficas na sua obra, incluindo a fenomenologia de Edmund Husserl e de Martin Heidegger, e o existencialismo de Jean-Paul Sartrenão esquecendo o cético e mordaz austro-húngaro Fritz Mauthner. Esta inspiração refletia-se, não só na sua literatura, como também na sua própria vida, contribuindo, para isso, os livros, e a própria imaginação. A sua colaboração com jornais não cessou, e tornou-se num colaborador assíduo para o “Sur“, o mais relevante do país na área da literatura. Com isto, a sua fama aumentou, e, ao lado do também alviceleste autor Adolfo Bioy Casares, escreveu alguns trabalhos, com o duo a assinar com o pseudónimo H. Bustos Domecq. Para além deste parceiro de lavoro, travou conhecimento com Macedonio Fernández, que o ajudou a investir na (i)mortalidade da alma nos seus livros.

No ano de 1933, o argentino tornou-se numa presença regular do suplemento literário do jornal “Crítica“, e, neste, publicou vários excertos daqueles que, juntos, viriam a constituir a “Historia Universal de La Infamia” (1935). Os excertos eram, na verdade, pequenos contos de delitos reais envolvidos por uma crosta ficcionada, dando o mote para aquilo que seria a sua conotação com o realismo mágico; isto, para além dos ensaios e das histórias de proveniência somente imaginária que compõem a obra, e de transcrições de passagens de livros um tanto ou quanto desconhecidos. Em 1936, tornou-se num conselheiro literário para a editora Emecé Editores, para além de redigir, semanalmente, uma crónica para o jornal “El Hogar“. Dois anos depois, enquanto ainda escrevia para este órgão de comunicação, tornou-se assistente na Miguel Cané Municipal Library, sendo responsável pela catalogação de mais de uma centena de livros por dia. No entanto, e tratando desta etapa com relativa facilidade, aproveitava o resto do tempo para escrever e traduzir.

Esse ano de 1938 tornar-se-ia marcante para Borges, pois foi esse no qual o seu pai faleceu, um pouco antes de celebrar os seus 64 anos; isto para além de, na véspera de Natal, ter quase padecido com um ataque de sepse. Enquanto recuperava, a sua literatura conheceu um novo fôlego, colmatado pelo conto “Pierre Menard, Autor del Quixote” (1939, pondo, numa crítica, em comparação duas abordagens narrativas sobre o mundo queixotesco, incluindo a de Miguel de Cervantes), e pela coleção de contos “El Jardín de Senderos que se Bifurcan” (1941, sobre um espião na I Guerra Mundial que quer vencer o estigma da raça na própria arte de espiar, e que se depara com um livro labiríntico no seu próprio trabalho). Numa dinâmica de crítica, a narrativa nunca prescindiu da fantasia, do humor, e da ironia, recriando-se num estilo muito identitário. Enquanto que, na primeira, põem-se em causa as origens da autoria de uma obra, para além da relação entre o próprio autor e o contexto histórico onde se constrói a mesma, a segunda traz a hipertextualidade, que propicia a navegação entre vários textos e enredos, tornando a leitura mais relativa e abrangente, gerando diferentes interpretações e visões. Essa multitude permitiu-lhe dar azo à criação de teorias do próprio universo, tanto do astronómico, como do seu íntimo criativo. Porém, e apesar de boas críticas, este último trabalho não conseguiu granjear muitos prémios da especialidade, levando a que vários autores criassem um projeto de revalorizar o valor literário de Borges (“Reparacion por Borges“, exposto no “Sur” em 1942).

A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

Jorge Luis Borges in: “La Rosa Profunda” (1975)

Com a sua visão a deteriorar-se a partir dos seus 30 anos, e incapaz de se manter financeiramente sustentável, o argentino começou a dar palestras, alimentando o seu papel de figura pública, e sendo convidado para dirigir a Sociedad Argentina de Escritores, e para lecionar Inglês e Literatura Norte-Americana na associação argentina destinada ao estudo da cultura inglesa. Numa altura em que começou, também, a escrever argumentos e peças de teatro, intercalando com a história “Emma Zunz” (1948), discutindo questões e valores éticos através de uma visão hermética daquilo que é a realidade. Mesmo com debilidades oculares, foi nomeado como diretor da biblioteca nacional argentina, isto no ano de 1955, pouco antes de se tornar totalmente cego, havendo deixado a posição após Juan Domingo Péron voltar ao poder, em 1973. Essa condição permitiu-lhe reforçar as interrogações em relação à vida, à morte, à verdade, e às mentiras com as quais o mundo orbita (a coleção de poesia “Elogio de la Sombra“, de 1969, traduz essas mesmas indagações existenciais). No ano seguinte a ser nomeado diretor da instituição nacional, foi reconhecido como doutor honorário na Universidad Nacional de Cuyo, sendo a primeira de muitas nomeações como tal em institutos de ensino superior. 1957 trazia o prémio nacional de literatura para Borges, que havia começado a lecionar na Universidad de Buenos Aires, onde deixaria de ensinar em 1970. No final dos anos 60, iria dar uma palestra em Harvard, abordando a poesia numa das “Charles Eliot Norton Lectures“.

Para responder aos problemas advindos da perda da visão, a sua mãe tornou-se a sua secretária pessoal, nunca tendo aprendido o Braille. A sua escrita propiciava-se naturalmente, e dava cartas fora de portas, tendo sido traduzida para o inglês, e publicada em diversas revistas e antologias durante os anos 50, incluindo uma de ficção científica (“Fantastic Universe“, em 1960). A fama foi-se adensando nesta década de 60, recebendo, em conjunto com o dramaturgo irlandês Samuel Beckett, o primeiro Prix International logo em 1961. O mundo hispânico, à data, conhecia bem Jorge Luis Borges, ao contrário de grande parte dos países anglófonos. Tudo isso mudou quando passou a ser presença em universidades norte-americanas, e quando viu publicadas as suas principais antologias de escritos, sendo estas “Ficciones” e “Labyrinths” (1962). De muito valeu a sua colaboração com o tradutor norte-americano Norman Thomas di Giovanni, que acompanhou o desenvolvimento do seu prestígio nessa nação, para além de, na Universidade de Virginia, ter um núcleo documental do autor. As palestras que dava foram dadas, também, pela Europa, culminando com mais uma série de honras para o seu pecúlio, tais como o Edgar Allan Poe Award (1976), o Prémio Cervantes, e a Légion d’Honneur francesa (estes em 1980), para além de outro doutoramento honorífico na Grécia – em Filosofia, na Universidade de Creta.

Algumas das obras traduzidas foram “El Libro de Los Seres Imaginarios” (1967, escrito com Margarita Guerrero), que contém uma vasta lista e apresentação de criaturas míticas e folclóricas; e “El Libro de Arena” (1975), escrito após estar completamente cego, agregando uma série de contos, dentro dos quais se destacam “El Otro“, onde Borges contacta com uma versão mais jovem do seu eu; “El Congreso“, onde se apresenta um congresso utópico universal; e “Ulrikke“, em que um casal formado por uma mulher norueguesa e por um professor colombiano dá origem a que ambos se expressem como duas figuras mitológicas (a valquíria alemã Brynhildr, e o herói nórdico Sigurd, respetivamente). O ano em que escreveu a primeira obra mencionada aqui foi, também, marcado pelo seu casamento com uma recente viúva, de seu nome Elsa Astete Millán, com quem esteve durante três anos. Após o divórcio, Borges foi viver com a sua mãe, que partiu aos 99 anos, e, depois desta circunstância, passou a viver sozinho, sendo cuidado pela governanta Fanny. A partir de 1975, o argentino passou a viajar ainda mais, sendo acompanhado pela sua assistente María Kodama, com quem contraiu matrimónio pouco antes da morte do autor, em 1986. Apesar de se casar por duas ocasiões, Borges definia-se como um agnóstico, estando recetivo, no entanto, a qualquer conceção metafísica como presente e evidente no mundo.

Consoante se aproximava do fim da sua vida, na cidade de Genebra, o argentino ia questionando sobre a possibilidade de existir um para além da morte, e acabou por solicitar a visita de dois clérigos, para homenagear as crenças da sua mãe e avó, esta de nacionalidade inglesa. Tudo isto enquanto o cancro do pulmão do qual padecia se alastrava por todo o seu corpo, e que só o deixou de atormentar na data de 14 de junho de 1986, partindo aos 86 anos de idade. Uma morte que não impediu que a sua palavra se perpetuasse pelas décadas seguintes, não permitindo que partisse no inconsciente coletivo dos seus compatriotas e apreciadores, como um virtuoso da palavra, como um labiríntico poço de ideias, de posições, de idealizações.

Ser imortal é coisa sem importância. Excepto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal. Já notei que, embora desagrade às religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que dedicam ao primeiro século prova que apenas crêem nele, e destinam todos os outros, em número infinito, para o premiar ou para o castigar.

Jorge Luis Borges in: “El Aleph” (1945)

O seu legado afirmou-se, também, postumamente, a partir da sua esposa e herdeira María Kodama, apesar das intempéries que sofreu com a publicação da obra. Alguns conflitos com editoras francesas, para além da rescisão dos direitos de publicação para coleções previamente existentes em inglês (contratando um outro tradutor para os livros do argentino), levou a que a gestão do seu espólio fosse remodelada em relação àquela que tinha sido à data da vida de Borges. Não obstante estas disputas, foram vários aqueles que o consideraram como um escritor de imensa influência, tanto no campo da hermética poesia, como na composição de pequenas narrativas, como na redação de inusitados ensaios. O seu corpo literário incorpora, também, críticas literárias e argumentos vários, que, mesmo com uma visão gradualmente frágil, se tornou mais sensível e interiorizado nos seus escritos, que se tornaram, predominantemente, poemas, para dar resposta aos constrangimentos físicos através da memória. Os seus interesses balançaram entre áreas diversas, como a mitologia, a teologia, e a matemática, e o imaginário que possuía refletiu essa mesma multitude, culminando em obras como “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” (1940, apresentando um mundo imaginário e futuro, que acaba por ser uma parábola em relação aos totalitarismos reais); “Las Ruinas Circulares” (1940, colocando em ênfase as manifestações humanas pensadas num mundo idealista), “Nueva Refutación del Tiempo” (1944-46, em que, numa dialética filosófica, refuta o conceito de tempo), e “Del Rigor en la Ciencia” (que põe em causa a ciência cartográfica, na tradução territorial para um mapa).

Profissionalmente, foi tradutor, usando a sua caraterística multilingue para apresentar inúmeros autores à sua lingua-mãe, incluindo obras de autores como William Faulkner, Franz Kafka, André Gide, e Virginia Woolf. Algumas das suas palestras incidiram na prática da tradução, reforçando as suas vantagens de poder melhorar e potenciar aquilo que uma obra literária tem para dar, para além das eventuais alterações pelas quais este exercício está responsável. Entre elas, está a falsificação literária, uma forma de rever e de editar um trabalho de cunho substancialmente imaginativo, podendo desembocar naquilo que é a pseudepigrafia, que consiste na atribuição de um texto a alguém que pouco ou nada teve a ver com a redação do mesmo. Neste exercício, escreveu obras totalmente independentes, embora as tenha cunhado com um nome de um outro autor, alegando tratar-se de uma tradução. Para além disso, fez revisões literárias de outras inexistentes, incluindo uma que um autor francês – Pierre Ménard, que nunca existiu – havia redigido, e que descrevia a história de Don Quixote através das suas próprias experiências.

A arte opta sempre pelo individual, o concreto; a arte não é platónica.

Jorge Luis Borges in: “Aspectos de la Literatura Gauchesa: Conferencia” (1950)

Esta toada de falsificação acaba por ser resultado da imaginação de Jorge Luis Borges, que cria novos autores e, a partir destes, livros da criação dos primeiros. Este caminho foi inspirado pelo autor escocês Thomas Carlyle, e pelo seu trabalho “Sartor Resartus” (1836), que é, precisamente, uma revisão de um livro de um autor alemão transcendentalista que parte da invenção do próprio Carlyle. A vontade que o conduziu a esta forma de expressão literária prende-se com uma oposição àquilo que é uma abordagem tautológica e redundante de vários trabalhos narrativos, que, numa envolvência labiríntica e até dividida em volumes, se pode transmitir numa série de linhas, em jeito de comentário ou não.

As várias viagens de Borges contribuíram para a mudança paradigmática da literatura do argentino, levando-o a derivar para uma visão mais global e cosmopolita, e distanciando-se do criollismo sul-americano, que expunha, de forma realista, os costumes, tradições, e vicissitudes das comunidades continentais e nacionais. Não obstante estes não serem uma nota dominante, não passaram despercebidos nas abordagens universais e existenciais no realismo mágico do alviceleste, que não descartava os problemas sociais. Também rituais e ancestralidades viajam no seu rico universo, incluindo as primeiras e primárias manifestações sexuais. “La Secta del Fénix” (1952) traz esse tipo de circunstâncias narrativas, incluindo algumas inferências homossexuais, colocando de lado a personagem feminina, que, por sua vez, está muito ausente da ampla e farta herança literária do autor. Nada disto impede, porém, a afirmação do próprio amor, que, apesar da objetificação da mulher, personifica aquilo que é a manifestação conjugal mais sentida e desmedida (“Ulrikke”), embora, geralmente, isto não seja um caso-exemplo da participação dela nas histórias. Muitas vezes é encarada, sim, como a germinadora de um amor não-correspondido, acabando negado em prol de outras ligações de amor.

O tempo, a infinitude, e a sua expressão e existência labirínticas foram temas dominantes nas narrativas criadas e exploradas por Borges, culminando em histórias como “Una Leyenda Arábiga” (1939, que envolve civilizações antigas e um complexo e desafiante labirinto), “El Milagro Secreto” (1943, tendo inspirado o realizador Christopher Nolan na forma como distorce as conceções do tempo, a partir de uma personagem que, em plena Segunda Guerra Mundial, recebe um ano adicional a ser vivido antes de ser fuzilado),  “La Casa de Astérion” (1947, desenrolando-se numa casa sem limites e fim à vista), e “El Aleph” (1949, que circunda este ponto no espaço, este contendo em si toda a perceção do universo). Aqui, investe na matemática, na quântica, e nas manifestações científicas de relevo para a explicação do tempo e do espaço. A infinitude entrega-se ao caos, às probabilidades, à topologia geométrica, à lógica, e à própria álgebra, numa discussão cientificamente extrapolada até às lides filosóficas e metafísicas.

A imagem que um homem só pode conceber é a de que não toca ninguém.
Jorge Luis Borges in: “La Busca de Averroes” (1947)

O fantástico também nunca se desvincula daquilo que é a identidade criativa do autor (“La Biblioteca de Babel“, de 1941, numa complexa teia entretecida entre livros, estantes, e peças-chave de um mistério para encontrar o catálogo da biblioteca; e “Funes el Memorioso“, datado de 1942, que é capaz de se lembrar de tudo que viveu desde que caiu de um cavalo. Também “El Jardín de Senderos que se Bifurcan”, obra com várias influências orientais, remete para as várias redes temporais, que se entrelaçam entre si, e que espelham as diferentes decisões que podem ser feitas, podendo levar a vários fins. Isto é, no fundo, o paralelismo da constante procura por significado, mesmo num palco que tanto tem de infinito, como de intrincado, que leva os livros Borges a terem um alcunha própria – “literatura borgesiana” – e a designar uma narrativa não-linear.

Outra das curiosidades introduzidas pelo argentino na literatura é o “conundrum”, que é a questão ontológica onde se tenta entender se é o escritor a escrever a obra, ou se vice-versa. Este conceito deriva da sua leitura de Franz Kafka, que, a seu ver, consegue mudar a conceção do passado, para além de modificar o próprio futuro, através das influências que semeia nos diversos olhares artísticos e literários.

Não só da fantasia é feita a obra do argentino, pois há muito daquilo que é a mitologia e a história social e política do continente sul-americano, envolvendo a filosofia, a fantasia, e a própria falsificação na estruturação das suas inúmeras narrativas. No âmago, os problemas existencialistas. Estes permanecem como a constante fulcral dos trabalhos de Borges, culminando na aleatoridade do universo (“La Lotería en Babilonia“, de 1941, em que a região é totalmente dominada por uma lotaria, que, de um mero jogo, acaba por decidir as próprias circunstâncias quotidianas), e no estudo da loucura (“El Zahir“, de 1949, onde é incutida uma crescente obsessão por Zahir, proliferando a loucura, e diminuindo a consciência à escala da humanidade).

Ainda associado à herança cultural argentina, Borges deixou alguns elementos proeminentes no seio. Em especial, destaca-se a personagem fictícia de Martín Fierro, criada a partir de um poema de José Hernández. Fierro é o epítome daquilo que são as raízes argentinas, afiançando-se às origens das pampas, e tornando-se num fora-de-lei em tempos de guerra, perante os adversários europeus, que, tanto em valores como em geografia, estão nos antípodas. Borges entra como um dos colaboradores para a revista homónima da personagem nos anos 20, de cariz socialmente crítico. Enquanto foi amadurecendo, tornou-se mais íntimo daquilo que é a própria estrutura da obra, colocando interrogações no valor moral de Fierro. No entanto, não deixa de valorizar aquilo que é o louvor do ser argentino, pondo a tónica nas tradições gaúchas e nas visões amplas do enredo. A sua principal reserva centrava-se naquilo que é o confinar da literatura à própria História e a demais restrições ao desenrolar da obra, incentivando para que a criação literária se sinta livre e desimpedida para uma nova faceta nacional, usufruindo do potencial existente.

Esta filosofia foi empregue por Borges no que foi escrevendo, abrangendo a história e os mitos do país. A sua poesia inaugural acompanha várias das suas perceções à data, incluindo preocupações nacionais e folclóricas, para além de vários ensaios, entre eles um sobre a história do Tango. O desacordo com o qual encarou a era Peronista acaba por retirar um pouco do ênfase dado pela crítica ao seu papel na projeção do próprio país. Muito do que escreveu sobre a nação partiu dos seus ascendentes, que tiveram participações mais ou menos prementes nas Guerras Civis que se abateram lá. No entanto, o autor considerava a discussão de assuntos de interesse universal como próprio e devidamente originário da Argentina, apontando, não aparições ou cenários, mas sim abordagens que, advindas deste país sul-americano, dizem respeito a todo o mundo.

Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.

Jorge Luis Borges in: “La Cifra” (1981)

Trata-se de um traço que desvenda a sua multiculturalidade, que incorpora diferentes influências cristãs, judaicas (o mistério de “La Muerte y la Brújula“, de 1942), budistas, islâmicas, anglo-saxónicas, nórdicas, entre várias outras. Este universo é condimentado por uma miríade de perspetivas, de posições, de mundividências, que se vai condensando em obras elaboradas e requintadas, adequadas para a globalidade à qual se referia com tanta regularidade. Isso acaba por receber influências da evolução do próprio país, contando com uma gama de imigrantes europeus que contribuiram para a diversidade identitária argentina. A religião destaca-se, também, por várias obras do cunho de Borges, tais como “Tres Versiones de Judas” (1943, aflorando, a partir de um autor falso, três abordagens distintas do papel de Judas Iscariotes), “La Busca de Averroes” (1947, expondo as dificuldades do islâmico Averroes em traduzir a obra aristotélica “Poéticas“), e”La Escritura del Dios” (1949, onde um azteca procura uma escritura divina que o torne omnipotente). Muitos dos livros deste teor do argentino procuram redescobrir a possibilidade e a potencialidade de redenção das suas personagens, abrindo esse próprio cenário ao universo. As suas viagens permitiram-lhe contactar com laivos nacionalistas e racistas, incluindo tornar-se íntimo do ditador chileno Augusto Pinochet, algo ainda bastante controverso na discussão da sua vida.

As influências que envolveu no seu registo literário foram, sobretudo, modernistas. Isto numa primeira fase, enqunato o simbolismo também amadurecia no seu íntimo. A multilingualidade e a tendência para inovar na escrita foram legadas por autores, como o irlandês James Joyce, e o russo Vladimir Nabokov, embora se tenha mantido mais no campo das pequenas histórias. Com as suas origens assimiladas, para além de perspetivas bem amplas, o argentino foi-se criando, tornando-se mais descritivo e barroco, até ao ponto em que se entregou ao naturalismo, e passou a compreender melhor o pendor humanista e social da arte, derivando deste a emoção. A arte, como canal de conexão pessoal, foi o que sempre motivou a sua escrita, tentando rentabilizá-la da melhor forma possível.

Por vezes à noite há um rosto
Que nos olha do fundo de um espelho
E a arte deve ser como esse espelho
Que nos mostra o nosso próprio rosto.

Jorge Luis Borges in “This Craft of Verse” (1992)

O existencialismo também tomou proporções bastante denotadas no seu desenvolvimento textual, apesar de se ir distanciando da imensa profundidade do pensamento filósofico alemão, e das visões prosaicas e moralistas de Jean-Paul Sartre e de Albert Camuspartindo para uma amplitude mais poética, remetendo para as várias influências da sua personalidade artística, e recriando-se até à universalidade a que tanto alude. Politicamente, foi um conservador, sentido repulsa pela teoria e prática marxista, que tanto se proliferou pelos governos militares sul-americanos, e sentindo-se atraído pelas propostas anarquistas do inglês Herbert Spencer, este um estudioso do trabalho de Charles Darwin.

Do universo para a multiplicidade de coisas que este compreende, este é Jorge Luis Borges, que se autodefine como um homem moldado pelas suas experiências, pelas pessoas que conheceu, pelos ascendentes que teve. O traço cosmopolita permitiu-lhe ser mais do que aquilo que muitos foram, conhecendo mais, e deparando-se com o diferente, o que causa sempre sensação na existência. Culminando numa visão das coisas que transcendeu aquela que perdeu, o argentino entregou-se às suas histórias, contando com um imaginário lustroso e radioso, e dando luz a uma bibliografia extensa e imensa. São vários os contos, apresentados e geracionados para todos os gostos, potenciando o brilhante interior das estrelas circundantes do universo do autor. A literatura é, desta feita, uma constelação que serve de consolação a uma vida desenfreada e repleta de viagens, passagens, e miragens, imortalizadas até depois das suas novas paragens.

PUB

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados

por ,    22 Abril, 2023

No maravilhoso mês de março, mês da mulher, o Prosa no Ar não podia deixar passar a oportunidade de ler […]

Ler Mais