O Messias, a Samaritana, seus Cinco Maridos e o Actual Amante Dela
Jesus terá realmente conversado com uma mulher samaritana a quem se declarou como Messias – ou devemos ler esse belo momento do Evangelho de João como alegoria teológica que não relata um evento real? Aceitar que os evangelhos contêm episódios ficcionais afecta o entendimento que fazemos de Jesus? Se não temos outra visão possível dele, além da de autor de acções e de palavras transmitidas pelos evangelhos as quais até os teólogos admitem que ele não praticou nem disse, afinal como saber quem foi Jesus? Que podemos saber de concreto e de incontroverso sobre ele, além de que foi crucificado? Alguma coisa que os evangelhos relatam aconteceu de facto? O cristianismo baseia-se numa ficção?
Como facilmente se compreende, levou muitos séculos, desde a imposição obrigatória do cristianismo no século V, até que os pensadores tivessem liberdade para colocar estas questões fulcrais. Não vos surpreenderá se eu vos disser que, a bem dizer, só no século XVIII estas questões começaram a ser equacionadas. E não é por acaso que o primeiro pensador a quem se reconhece o passo inicial na interrogação crítico-histórica sobre a pessoa de Jesus não se tenha atrevido a publicar a sua obra em vida. Com efeito, foi só após a sua morte, em 1768, que um círculo restrito de intelectuais alemães teve conhecimento do ensaio de Hermann Samuel Reimarus, “Apologia para os Veneradores Racionais de Deus”, graças à divulgação discreta feita por Lessing.
No século seguinte, foi publicada na Alemanha a grande bomba: o livro de David Friedrich Strauss, cujo título em português seria “Vida de Jesus” (1836). Este livro provocou um escândalo imenso e suscitou uma torrente de refutações e de críticas indignadas. Tal como acontecera em 1707, quando John Mill publicou a primeira edição incipientemente crítica do texto grego do Novo Testamento, Strauss foi acusado de minar a fé cristã. Até à sua morte em 1874, Strauss foi vilipendiado e ostracizado – o livro “Vida de Jesus” nunca lhe foi perdoado.
O que tinha este livro de tão bombástico? O aviso de que os evangelhos não nos dão a conhecer o Jesus real (o Jesus “histórico”), mas sim uma retroprojecção ficcional. Segundo Strauss, não há praticamente nada nos evangelhos que nos dê a conhecer o homem real, Jesus de Nazaré. As palavras, na sua maior parte, não são dele; os milagres são alegorias teológicas que nunca aconteceram. E é claro (para Strauss) que ele nunca se declarou como Messias a uma mulher samaritana com cinco maridos, tal como lemos no Evangelho de João.
Aliás, Strauss foi talvez o primeiro historiador do cristianismo a reconhecer no Evangelho de João um artefacto teológico desprovido de fidedignidade histórica. Esta opinião já foi perfilhada e refutada mil vezes desde o século XIX, mas não há dúvida de que Strauss marcou profundamente o estudo histórico dos evangelhos: ainda hoje uma maioria de estudiosos se revê na posição de Strauss.
Onde hoje já quase ninguém se alinha com Strauss é na sua convicção de que os evangelhos mais antigos são os de Mateus e de Lucas (sendo o Evangelho de Marcos, para Strauss, uma epítome ou resumo destes dois). Desde a publicação em 1863 na Alemanha do livro de Heinrich Julius Holtzmann, cujo título em português seria “Os Evangelhos Sinópticos: A Sua Origem e Carácter Histórico”, ficou praticamente de pedra e cal a teoria de que existiu uma fonte comum a Mateus e Lucas designada como “Q” (em alemão “Quelle” significa “fonte”) e que tanto Mateus como Lucas se basearam também em Marcos. O Evangelho de João manteve o seu estatuto de artefacto teológico sem valor histórico – pelo que, também na visão de Holtzmann, Jesus nunca se sentou junto de um poço a falar com uma samaritana.
Claro que, também no século XIX, houve quem propusesse que Jesus não se sentou a falar com a samaritana pela simples razão de que nunca existiu uma pessoa chamada Jesus. Essa teoria foi defendida por Bruno Bauer. Tanto no seu livro de 1840 (que em português se chamaria “Crítica da história evangélica de João”) como no seu livro em 3 volumes de 1842 (“Crítica da história evangélica dos Sinópticos”), Bauer defendeu que Jesus nunca existiu e que o cristianismo parte de um texto de pura ficção: o Evangelho de Marcos, no qual os outros se basearam, dando assim origem a uma religião baseada em “factos” que nunca aconteceram protagonizados por alguém (Jesus) que nunca existiu.
A extensa bibliografia de Bruno Bauer (onde devemos salientar estudos valiosos sobre Paulo, que me foram muito úteis) encontrou no século XX um leitor entusiasta que, não inteiramente por acaso, era germanista: George Albert Wells, distinto estudioso do poeta austríaco Grillparzer, que em 1971 surpreendeu o mundo com um livro intitulado “The Jesus of the Early Christians”, o pontapé de saída para uma série de livros em que ele argumentava que o Jesus de que nos fala o Novo Testamento nunca existiu. Wells teve uma vida longa (morreu este ano, em 2017, aos 90 anos) e modalizou um pouco a sua visão depois de ver o tipo de literatura a que os seus livros publicados nos anos 70 deram origem. Assim, para se demarcar dos novos defensores da teoria de que Jesus nunca existiu (Robert Price e Richard Carrier, para citar apenas aqueles que merecem respeito académico), Wells admitiu mais tarde (no seu livro de 2003, “Cutting Jesus Down to Size”) que Jesus poderá ter existido, mantendo, no entanto, a sua posição em relação ao carácter lendário do nascimento virginal, dos milagres, da crucificação e da ressurreição.
O que fica de Jesus se subtrairmos nascimento virginal, milagres, crucificação e ressurreição? Fica alguma coisa? Há diferentes respostas para esta pergunta. Podemos responder que fica muita coisa maravilhosa susceptível de mudar o mundo para melhor. Mas não irei entrar agora nessa questão.
Voltando à conversa de Jesus com a samaritana. Desde o século XIX, muita água já passou e o “rio” que é o estudo do Novo Testamento já não é o mesmo. A ideia da irrelevância histórica do Evangelho de João continua a ter os seus defensores; mas também foram escritos livros notáveis como o de J. Robinson (“The Priority of John”, 1985) a argumentar o contrário. Assumir posições irredutíveis, na suposição de que alguém pode estar na posse da verdade absoluta destes temas, parece-me disparatado. O que não significa que não levantemos as perguntas, que não reflictamos sobre elas. O historiador inglês Robin Lane Fox escreveu em 1986 que nenhuma geração se pode manter à margem da interrogação sobre se o cristianismo é verdadeiro. Eu diria que nenhuma pessoa se pode manter à margem dessa interrogação, cuja resposta pode ser outra além de “é verdadeiro porque acredito que é”.
Na minha opinião, o relato literário da conversa de um homem chamado Jesus com uma samaritana é mais importante para a história da humanidade do que a questão sobre se ocorreu, de facto, essa conversa. Eu, pelo menos, vejo no homem que dialoga junto do poço com a mulher dos cinco maridos (que agora vive com um amante) o Jesus que me impede de ser ateu.