O meu avô era um bom camarada
O envelhecimento é a pedrada no charco e a transformação do êxtase em negrume, o governo é engolido pela rápida metamorfose sofrida e os santos titubeiam no altar. A superficialidade humana atinge o seu apogeu e a morte dispara a sua popularidade. A confluência com a realidade é facilmente exequível porque a morte paira, retrocede e transgride no seu campo de ação.
Quando era pequeno, o meu avô estava recostado numa poltrona situada na marquise de sua casa a ler um pequeno calhamaço. Eu jogava à bola no terraço, a poucos palmos dele e, apercebendo-me de que os estrépitos no portão podiam perturbar a leitura, cessei a atividade com medo de um possível raspanete vociferado e – quiçá – concretizado. Com o intento de obter a sua companhia, dirigi-me ao pequeno retângulo imperturbado. Prestes a convidá-lo para uma brincadeira conjunta, a figura duplamente paternal antecipa-se e responde-me “Agora não, pequeno camarada. O avô está a ler José Saramago e precisa de concentração para perceber o que ele escreveu”. Na altura, o meu descontentamento resultou em birra e choro. A insistência venceu e ele lá me fez a vontade…
Semanas mais tarde, sem explicação aparente, inquiri-o sobre o nome do autor. Convivo com José Saramago – embora sem o ler – desde os quatro anos de idade. A cada passo que o observava o meu avô a folhear livros, perguntava se eram do nome inscrito na ponta da língua. Até hoje, palpita-me a não compreensão de uma peripécia daquela espécie pelo facto de as crianças serem bombardeadas com tudo e mais alguma coisa, esquecendo-a no momento seguinte ou prematuramente, e eu reter um nome, a princípio estranho, e posteriormente importante no desenvolvimento pessoal: no início, achei que fosse pelo tom de voz simultaneamente suave e grave, pelas cócegas distribuídas naquele momento terno ou pelo amarelo pálido que cobria a capa do livro.
Coincidência ou não, o senhor Nobel perpetuou-se em mim. Se existe alguma espécie de positividade incrustada nesta quarentena entediante, deve-se à leitura de duas obras suas (para já!) e a inversão de marcha que a literatura me exigia, ainda que em gritos mudos.
Não me venham com a desculpa rompida da ausência de pontuação, com as ideologias políticas e religiosas a aflorar um extremismo (na minha opinião, encantador e lúcido), com o espírito crítico destrutivo e verdadeiramente reacionário ou com a agressividade (poética, convém notar) que jaz nas suas palavras. Se alguma das razões enumeradas constitui um argumento para dizer que não o suporta, pode abandonar o texto aqui mesmo. Saber separar a pessoa do artista e as respetivas obras do comentário na opinião pública constitui uma atividade de indispensável maturidade cultural. Pessoas ditas de Direita e cristãs também o leiam, desengane-se quem pensa que só os esquerdistas se dão ao trabalho.
Desde a primeira obra, tornei-me de imediato consumidor ávido. A atualidade das suas escrituras assusta e rejuvenesce a minha alma, simultaneamente. Num momento em que os planos e as estratégias que antecipavam um futuro próximo se encontram em stand-by, enalteço a intemporalidade das suas obras. Colocar, em papel, a dilaceração humana e as vísceras de uma epidemia que paralisou (literalmente) uma população e a deixou perto de uma decomposição consciente e, nas entrelinhas, confiscar ao leitor a sua capacidade de divagar no vazio de uma dicotomia entre a morte e a vida, o humanismo e a irracionalidade e o vão e o frutífero com esgares de conformismo e irreverência. “Ensaio Sobre A Cegueira” recomenda-se à integra do espetro político e religioso uma vez que é tempo de unidade e não de oposição feroz.
Por sua vez, reluz na biblioteca ampla da sala-de-estar “As Intermitências da Morte”. E é precisamente aqui que “a porca torce o rabo”, como na gíria se profere. A obra esbofeteia o desprezo sentido por muitos e, a meu ver, é a chapada de luva branca que merece ser dirigida aos que não o suportam. A sátira, antes de estar assente na raiz das convicções, distende-se pela sociedade. O medo que angustia a populaça, a vertigem que a morte representa, a queda que o Homem teme e pressente na sua sombra, a incoerência sinalizada ao longo de páginas escritas com a caneta mergulhada na tinta nua e crua da verdade. O envelhecimento é a pedrada no charco e a transformação do êxtase em negrume, o governo é engolido pela rápida metamorfose sofrida e os santos titubeiam no altar. A superficialidade humana atinge o seu apogeu e a morte dispara a sua popularidade. A confluência com a realidade é facilmente exequível porque a morte paira, retrocede e transgride no seu campo de ação.
Onde quer que o meu avô esteja, deverá ser próximo do sítio onde Saramago repousa. A um quero cumprimentar e dizer que as saudades apertam, a outro felicitar pelo legado deixado e dedicar este texto. Ah, se possível, pedia a ambos que jogassem futebol comigo e que multiplicássemos, em conjunto, os ruídos no portão.