O mundo pictórico de Júlio Resende
Quando as artes plásticas surgem à tona na discussão contemporânea e quotidiana, Júlio Resende é um dos nomes que, mesmo tendo partido há alguns anos, surge como referência nos trabalhos que são (re)visitados nos dias atuais. A sua pluralidade conferiu-lhe a plenitude do ser e do criar artístico, consentâneo com o contributo que legou em todo o país, em especial no Porto. Tanto através da pintura, como da azulejaria, fundiu o seu trabalho numa dinâmica vanguardista e modernista, não dispensando a influência de várias correntes de produção artística, tais como o cubismo e o expressionismo. Colmatou, desta feita, uma identidade própria e destrinçada, capacitada de contemplar os mais interessados com uma vasta obra, munida de arte e engenho para dar cor e novas conceções à superfície cognoscível.
Júlio Martins Resende da Silva Dias nasceu no Porto, no dia 23 de outubro de 1917, tornando-se o segundo filho de quatro do comerciante Manuel Martins Dias e da professora de música no Conservatório da cidade Emília Resende da Silva Dias. Crescendo no seio de um ambiente católico mas profundamente artístico, conheceu uma cultura musical rica, por via da sua mãe, por quem sentia uma especial admiração, embora se tenha apaixonado pela pintura e pela ilustração, muito pela espontaneidade do seu tio. Essas aspirações acabaram por se desenquadrar com as dos pais, que desejavam que seguisse um dos caminhos profissionais que tinham, embora viesse a colaborar com o pai no desenho e pintura de calçado e de candeeiros. Para além disso, chegou a pintar-se de palhaço, e a enveredar pela animação sociocultural, de forma a contrariar os insucessos e frustrações dos negócios do seu progenitor.
A sua educação começou na Academia Silva Porto, onde, lecionado por Alberto Silva, aprenderia as bases pictóricas e de desenho, tendo praticado essas ilustrações e a própria banda desenhada em jornais, incluindo o Jornal de Notícias e O Primeiro de Janeiro (para o qual foi correspondente em Paris), e em várias publicações infantis. No entretanto, e vislumbrando agradar ao seu progenitor, esteve num curso comercial entre os anos de 1934 e 35. Isso não o impediu de figurar na Grande Exposição dos Artistas Portugueses, retratando o seu avô materno, a lápis, e assinando-o com o nome Júlio Resende, homenageando a sua mãe; para além do que faria da sua avó, em 1938, na exposição de alunos do seu docente na Academia Silva Porto.
A paixão artística reforçou-se, e viria a licenciar-se em Pintura no ano de 1945, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto (ESBAP), tendo conhecido a mestria do modernista Dórdio Gomes. Antes, havia feito a sua primeira aparição pública profissional, participando, em 1943, na organização da I Exposição do Grupo dos Independentes, movimento modernista criado pelos próprios alunos da Universidade, incluindo os pintores Júlio Pomar, Fernando Lanhas, Nadir Afonso, e o próprio Júlio Resende, numa crítica à tradição academista e numa crescente intimidade em relação ao neorrealismo. Neste ano, contrairia matrimónio com a sua colega escultora Maria da Conceição Moutinho, e organizaria a sua primeira exposição individual, no Salão Silva Porto. Resende concluiu o curso, suportando todas as suas despesas com vendas de trabalhos gráficos da sua autoria, com a obra “Os Fantoches”, conseguindo uma média de 18 valores.
Em simultâneo, começou a carreira de professor em 1944, na Escola Industrial de Guimarães, dando, também, a sua primeira palestra no Instituto Britânico do Porto, acerca de gravadores britânicos, onde iria criar um curso de arte. Pouco depois, abriria os horizontes ao viajar a Madrid, conhecendo o pintor Daniel Vázquez Diaz; e viria a conquistar os prémios Armando de Bastos, e da própria Academia Nacional. 1946 traria o nascimento da sua filha Marta, e a primeira exposição na capital do país, em Lisboa. Esta fase incipiente da sua obra trouxe uma série de histórias da sua autoria, culminando nas publicações e histórias infantis acima assinaladas, tais como “Matulinho e Matulão”, em revistas como “O Papagaio” (em colaboração com um dos seus irmãos), e “Tic-Tac”. A sua pintura conheceu um especial encanto e vocação para pintar temas alentejanos, após integrar a nona Missão Estética de Férias, situada em Évora, tornando-se consolidada quando lá passou a trabalhar, refletindo causas e questões humanistas nos trabalhos que originou.
Nesta fase, conseguiu uma bolsa de estudo do Instituto de Alta Cultura, e partiu, ao lado da família, para Paris, onde foi lecionado por nomes, como Duco de la Haix, e Otto Friez (na academia Grande Chaumière), e aprendeu novas técnicas de afresco e de gravura na École des Beaux Arts. Emulando nomes, como Diego Velásquez, Pablo Picasso, Francisco de Goyá, e Pieter Brueguel, travou conhecimento com vários museus na Flandres, em Itália, e em Inglaterra, em viagens que as suas parentes já não lhe acompanharam (por razões económicas), mas numa bolsa que viria a ser cortada pouco mais do que um ano depois. O trabalho que, aqui, desenvolveu seria exposto no seu país um ano depois, exposição à qual se seguiu alguma contestação dos seus contemporâneos compatriotas. Não obstante, manteve contactos privilegiados com Almada Negreiros, e os pintores Eduardo Viana e António Charrua, para além do autor Virgílio Ferreira, em tempos onde se sentia um distanciamento entre os grupos de norte e sul do país. Foi uma fase em que, apesar de ter sido professor em Braga, e numa escola de cerâmica em Viana do Alentejo, se encontrava, de forma autónoma, numa espécie de desterro, e não recusou um convite do pintor Karl Straume, para viajar para a Noruega, onde viria a expor pela primeira vez no estrangeiro.
De regresso nos anos 50, passou a viver no Porto, onde foi, novamente, professor no secundário. Mesmo assim, nunca se privou de pintar frequentemente, em especial temas ligados ao mar e à vida piscatória (destaca-se o embargado “Mar Novo”, projeto do arquiteto João Andersen, e corroborado pelo escultor Barata Feyo, onde se incluía um monumento para o Infante D. Henrique, em Sagres). Recebendo um prémio especial na Bienal de São Paulo, passou a firmar-se como um dos mais proeminentes artistas no norte do país, e deu forma a um afresco na Escola Gomes Teixeira, em plena cidade do Porto. Em contacto com gente jovem nas escolas onde lecionava, passou a explorar o desenho infantil, e, simultaneamente, promoveu as “Missões Internacionais da Arte”, inclusive na Póvoa de Varzim, onde deu aulas. Numa impressionante conciliação de compromissos, licenciou-se, em 1956, em Ciências Pedagógicas, na Universidade de Coimbra.
“Alentejo” (1950)
Na Escandinávia, mais concretamente em Oslo e Helsínquia, lançou-se com a exposição “4 Artistas Portugueses”, onde brindou os seus habitantes e turistas com uma série de quadros sobre o Porto e a Póvoa de Varzim. conquistando mais uma série de galardões nacionais (para além das notabilizações fora de portas), e de dar luz a mais uma mão cheia de iniciativas de promoção da atividade artística nacional. Entretanto, daria amplitude à sua carreira artística, com painéis de azulejo (Vilar Formoso e Miranda do Douro, ao lado do arquiteto Castro Freire), e de cerâmica (no Hospital de São João, no Porto). A produção de azulejo, em especial na sua reutilização, conheceu peculiar predominância, realizando murais e painéis para diversos edifícios. Aqui, articulou trabalho com o arquiteto Luís Pádua Ramos, colaborando em vários espaços no Porto e em Aveiro.
Resende assumiria o papel de docente, na década de 60, na instituição onde se tinha licenciado, após o convite de Dórdio Gomes para ser seu assistente. Aqui, tratou de incutir a sua personalidade artística nos próprios ensinamentos transmitido, e muniu os seus pupilos de um espírito renovador, diferenciador e empreendedor. Este era fruto de um europeísmo que havia incorporado, no que toca ao plano artístico, e que o inspirava nas suas aulas e nos seus ensinamentos. Na criação artística, realizou um painel cerâmico (“Grande Árvore”) para a Pousada de Bragança, cinco painéis para obras arquitetónicas, e afrescos para o Palácio de Justiça do Porto e o de Lisboa, para o edifício do Banco de Portugal, e para o Tribunal de Justiça de Anadia; para além de figurinos para as encenações de Carlos Avilez “Auto da Índia” e “Auto da Alma” (Teatro Experimental do Porto), adaptados do dramaturgo Gil Vicente, e “Fedra” (Teatro Experimental de Cascais), do francês Racine, para além da de “Antígona”, do grego Sófocles. Para o seu amigo Virgílio Ferreira, ilustrou “Aparição”, e realizou cenários e figurinos para o bailado “Judas”, coreografado por Águeda Sena. Ainda numa etapa intermediária da sua carreira, conheceu uma retrospetiva organizada pelo Secretariado Nacional de Informação, órgão associado ao Estado de então.
Eventualmente, conquistou os prémios Diogo de Macedo (1960), e Artes Gráficas (1969), numa outra edição da Bienal de São Paulo. Em 1962, iria ficar pela sua casa-atelier, na zona do Gramido, em Gondomar, projetada pelo arquiteto José Carlos Loureiro, seu colaborador de longa data. Um espaço simples, mas que se tornou mais disperso com a vasta coleção de artefactos de Resende, estando esta disposta na atualidade. Uma coleção que inclui uma série de materiais fotográficos, sonoros, textuais, e multimédia, para além de conferências e de algumas obras nunca antes reveladas ao público, que inclui ensaios de painéis cerâmicos de vulto.
Sem título (c. 1971)
O seu envolvimento nas artes perfomativas iria conhecer um crescimento amplo, e que culminaria na orientação visual e estético que proporcionou no espetáculo nacional da Exposição Mundial de Osaka, em 1970. Após viajar para o Brasil, onde esteve com o escritor Jorge Amado e o artista Mário Cravo Júnior, tornou-se membro da Academia Real da Bélgica. 1973 trá-lo-ia o grau de Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada, ano em que ilustrou a obra “Retalhos da Vida de um Médico”, de Fernando Namora. Pouco depois, assumiu funções diretivas na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, realizou o cenário do filme “Cântico Final”, do realizador Manuel Guimarães, e os cenários e figurinos do bailado “Canto de Amor e Morte”, coreografado por Patrick Hurde. Viajando, de novo, para o Brasil, e cruzando-se com os artistas canarinhos Francisco Brennand e Sérgio Lemos, viu o seu neto Daniel a nascer, no ano de 1979.
A sua vida tornou-se cada vez mais íntima do Brasil, conhecendo os estados de Pernambuco, Baía, e Recife, mas também em Espanha conheceu honras estatais, tornando-se Comendador de Mérito Civil. Tudo isto numa fase de maior maturidade artística do pintor, que realizou a decoração da Igreja de Nossa Senhora da Boavista, no Porto, do arquiteto Agostinho Ricca Gonçalves, o célebre mural “Ribeira Negra” (1984), adaptado a grés em 1986, e participou nas celebrações do centenário da ESBAP, onde deixou de lecionar em 1987. Um ano depois, terminaria o seu período de docência, e, em 1989, teria uma exposição retrospetiva do seu amplo repertório na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Os anos 90 importar-lhe-iam uma nova paixão, da qual resultou o casamento com a pintora Maria Zita Leão, em 1993, no ano em que foi criada a própria Fundação Júlio Resende, adjacente à sua residência, e viajou pela lusofonia, conhecendo algumas ilhas de Cabo Verde, Goa e Moçambique. As viagens que efetuou influenciaram amplamente aquilo que foi a plenitude de paletes apresentadas e desenvolvidas, numa variedade de cores que se foi amadurecendo com a experiência de vida e do seu ímpeto criativo.
Pormenor de “Ribeira Negra” (1986)
Entre os anos de 1994 e 1995, desenvolveu um dos painéis cerâmicos mais célebres da sua autoria, estando ele na estação do metropolitano de Lisboa Sete Rios, decorando os seus azulejos em 1997. O seu país, representado na figura de Jorge Sampaio, presidente da República à data, contemplá-lo-ia com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, estando presente na inauguração da própria sede do Lugar do Desenho, ladeando a sua fundação, esta no lugar onde havia sido o seu atelier até à data.
Júlio Resende viria a partir no dia 21 de setembro de 2011, aos 93 anos, na cidade de Valbom, em Gondomar. Antes, tinha conhecido uma série de exposições retrospetivas, em lugares como Matosinhos, e na própria Alfândega do Porto (2007, uma antologia dos seus 90 anos de vida); e receberia uma homenagem na XIV Bienal Internacional de Arte, em Vila Nova de Cerveira, após ser referenciado e estar presente em tantas por todo o globo, incluindo nos Estados Unidos da América. O final da sua vida contaria com a sua devolução física e humana à cidade do Porto, onde cresceu, estudou, e se fez conhecer e desenvolver.
A sua pintura incorporou o cubismo, na fase em que se sitiou no Alentejo, mais serena e reflexiva; e, já no Porto, após regressar da Europa Central, entregou-se às malhas marinhas e geométricas, onde a dinâmica e a plasticidade conheceram uma nota especial e de destaque, bem mais densa que outrora. Este período permitiu-lhe cruzar o gestualismo (onde se consegue percecionar o gesto da própria criação artística na obra final), o neofigurativismo, e até o não-figurativismo com o neorrealismo (“Regresso ao Trabalho”, de 1950, e “Mulheres de Pescadores”, de 1951), sem nunca perder a sua identidade expressionista e lírica. Tudo isto sem esquecer o naturalismo, bebendo o do ibérico Goyá para tal efeito. São várias as facetas que o pintor incorpora no seu trabalho, empenhado e ritmado em consonância com a realidade retratada. Foi nesta charneira entre o figurativo e o abstrato que desenvolveu maior parte da sua personalidade criativa. A farta gama de périplos, em especial a brasileira, onde foi conquistado pela sua contagiante alegria, que fez levou-o a privar com uma série de rumos artísticos, apostando, por aí, na sua versatilidade. No desenho, via a formação de uma personalidade, discutida e percorrida pelas viagens interiores e exteriores feitas pelo artista. Embora o confronto com a tela vazia o fizesse estremecer, ia superando obstáculos, tais como as reflexões constantes, com o gesto que era estendido e percorrido pela cor em todo o espaço em branco. Cor essa que também conheceu uma evolução, desembaraçada de preconceitos, e ligada a uma toada mais otimista e dinâmica, embora à procura do equilíbrio ideal.
Tanto sobre tela, como murais, serigrafias, vitrais, painéis, gravuras, ilustrações de livros (“Noite de Natal” [1959], de Sophia de Mello Breyner, e “Aquela Nuvem” [1986], de Eugénio de Andrade), cenários e figurinos de teatro e de bailados, Resende deu cor e profundidade a todo uma empática e enfática expressão, e que foi difundida em diferentes exposições nacionais e internacionais durante sete décadas. Como docente, transmitiu a sua irreverência artística, firmada e afamada pelos seus estudantes e aprendizes, proliferada pelo ensino secundário regular e técnico, e colmatada no ensino superior artístico. No entanto, tentava atender para o potencial individual de cada um, fomentando mais mentalidades, consciências e diálogos do que técnicas, e respeitando as valências materiais e operacionais dos seus alunos.
Retrato de Eugénio de Andrade
Júlio Resende foi um pintor viajado e um docente dedicado, empenhado em munir a pintura de recursos artísticos e humanos de valia e de inspiração singular. Reconhecendo as diferenças de progressão cultural entre Lisboa e Porto, tratou de investir parte dos seus esforços no desenvolvimento deste, legando grande parte da sua obra ao Norte do país. Foi ao pintar que, como o próprio dizia, deu razão à sua existência. A pintar e a criar arte, dando luz e harmonia a uma personalidade artística única, que se desmembrou de igual modo na docência e na criação, na instrução e no auge da representação da sua essência. Resende foi, desta feita, uma personalidade que se viu nascer e crescer na amplitude da arte em pleno efervescer.