O nosso admirável feed encantado
Hoje em dia todos nós, à distância de um clique, nos podemos tornar um José Gomes Ferreira do nosso Facebook, especialistas em todos os assuntos da ordem do dia. Mas, apesar dessa informação nos chegar quase instantaneamente através de várias plataformas possíveis, ela chega-nos de forma direccionada no seio das redes sociais. Os nossos “gostos” (aka likes), os amigos com gostos semelhantes aos nossos, as pessoas a quem damos “likes” com maior frequência – e que por isso se tornam mais recorrentes no nosso feed em detrimento de outras – são uma perigosa formatação de todo o conteúdo informativo que recebemos e, por consequência, daquele que nunca receberemos. Por outras palavras, se procuramos outros pontos de vista, se queremos pensamento ou massa crítica, o nosso feed de notícias é um dos últimos sítios onde o devemos procurar, a não ser que saibamos das pessoas que o possam, de facto, fomentar.
À semelhança de “Canino”, filme “distópico” de Yorgos Lanthimos onde a realidade de três irmãos no seio da sua família é deliberadamente distorcida pelos pais que atribuem a uma série de coisas nomes e significados diferentes aos da realidade, distorcendo por isso a percepção destes perante a realidade exterior, também nós criamos, indirectamente, essa nossa própria realidade alternativa, sendo a mesma potenciada ao máximo pelas nossas habituais preferências e hábitos na internet e redes sociais: os algoritmos, esses diabos acríticos do século XXI.
Vivemos numa espécie de “caverna” de Platão. A questão é se queremos, ou como podemos actualmente sair dela ao mesmo tempo que renegamos o contraditório? Se nos fixamos numa certa corrente de opinião e de pensamento, como poderemos descobrir (ou até melhorar) outra que não a nossa? E, sobretudo, porque é que marginalizamos essa opinião contrária quando nos deparamos com ela apesar de, quando muito, nos obrigar a sair da nossa zona de conforto e com isso melhorarmos a nossa própria argumentação? O acriticismo e a fuga à discussão (saudável) é o primeiro passo para a nossa estagnação intelectual por falta de estímulos à sua evolução pelo contraditório, a única possibilidade que temos de ser estimulados e sermos obrigados a pensar além.
Martin Luther King Jr. disse uma vez que “para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que se pensa.” Intemporal, e hoje em dia fazêmo-lo nesta nossa bolha chamada perfil pessoal. Atacamos, ignoramos ou ocultamos tudo o que for afronta ao que dizemos.
Vivemos numa sociedade onde cada vez mais temos as ferramentas necessárias para criar uma realidade só nossa. Uma espécie de subterfúgio onde passamos grande parte do nosso dia, mas também uma sociedade paradisíaca e acrítica, onde não nos temos de “chatear” com nada, onde quando discordamos desamigamos (depois de insultar ou de nos insurgirmos contra a sua opinião – que é meramente isso, uma opinião), ou tiramos o like de uma página. Uma realidade construída por cada um de nós ao estilo do que se fazia até aqui em jogos como Sims, e à qual chamamos simplesmente de “rede social”, o espelho da “Modernidade Líquida” do sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman.
Está porventura aí a proliferação de tanto movimento “anti” qualquer coisa. É fácil toldar uma opinião, e mais fácil ainda é passarmos a ser entendidos ou deixarmo-nos levar apenas por um determinado ponto de vista sobre um mesmo assunto. Mal damos por isso estamos numa caixa de comentários cheios de revolta contra algo que, com maior ou menor fundamento, terão as suas razões. A questão é se nos deixamos levar simplesmente, ou procuramos a posição contrária, discutindo de forma saudável e procurando conhecer opiniões contrárias, mesmo que isso nos tire da nossa bolha, ou, se preferirem, do nosso “feed encantado”.