O nosso take 3 no Matosinhos em Jazz na forma de um fim-de-semana
Depois de termos ido a Matosinhos para escutar jazz no ano passado e em 2022, não quisemos falhar mais nenhuma edição desde a interrupção do festival por força da pandemia e fizemos a mochila para mais umas horas no Jardim Basílio Teles. A curiosidade que tivemos logo no que toca à revelação do cartaz mostrou a vontade que tínhamos de lá voltar, já que fomos várias vezes felizes por lá. Recordamos Alfa Mist, Ashley Henry, Kamaal Williams e Amanda Whiting, todos eles nomes conceituados do assomo criativo do jazz britânico que cada vez nos deslumbra mais e mais, consoante os vamos descobrindo.
Logo à partida, revelou-se que seria Moses Boyd o cabeça-de-cartaz do evento, algo que poderia antever um cartaz menos forte e sem tanta notoriedade nos seus nomes. Mesmo assim, só quem não conhece os sete caminhos deste premiadíssimo músico é que acha que é um nome modesto. Trata-se de um baterista e compositor que, fora a sua discografia a solo – “Absolute Zero” (2017), “Displaced Diaspora” (2018) e “Dark Matter” (2020) -, traz um pedigree de jazz fusion, de eletrónica, de grime, do highlife e até de rock que faz sombra a tantos. Fomos privilegiados com a oportunidade de conversar com ele e de o conhecer melhor como artista, desde os tempos em que era um pupilo do pianista Peter Edwards até ao momento.
Nos seus créditos, para além do duo Binker & Moses com o saxofonista Binker Goldberg, deste com o baterista nos Exodus (nota para o sopro de Nathaniel e Theon Cross) e da unidade com o produtor DARGZ, traz colaborações com inúmeras figuras da cena jazz do Reino Unido. A saber, entre muitos outros, Oscar Jerome (no seu álbum homónimo), Nubya Garcia (“Nubya’s 5ive”), Joe Armon-Jones (“Turn to Clear View”) e os próprios Sons of Kemet (“Your Queen is a Reptile”). Sobre estas colaborações, o baterista mencionou “a boa amizade que tenho com vários dos artistas com quem toquei e a música nasce deste espírito positivo, em que eu toco com uns e eles tocam comigo, e, mesmo com alguns a subirem de nível, vamo-nos ajudando”. Nota, de igual modo, para a sua passagem no Cool Jazz no ano de 2022, sendo a última vez que passou, musicalmente falando, por Portugal, país que, como nos disse, muito aprecia, para além da gastronomia e das bebidas, pelo romantismo e pela criatividade dos próprios músicos e até de Fernando Pessoa.
Boyd falou-nos, também, das suas origens jamaicanas e dominicanas e do gosto com que cresceu a escutar a cultura do sound system e a música de Bob Marley e de Lee “Scratch” Perry, tendo-lhe dado bases para entender a música como voltada para a comunidade. A tal diáspora negra de que se orgulha de trazer ao peito – “às vezes, é uma mensagem óbvia; noutras, mais subtil” – e que diz como algo que une a sua música à de tantos outros desse jazz emergente de Londres. “É uma energia que se coloca na música e, desde que as pessoas estejam recetivas para as entender dessa forma”, fala da sua música, mas também de Londres como “um espaço de convergência de heranças e de texturas musicais de uma forma que se torna autêntica para nós”. A visão de Boyd dirige-se, assim, para uma tomada de iniciativa maior e de um espírito verdadeiramente empreendedor das comunidades negras na música, que não se limitem à mera produção de música e de discos.
As inspirações de um Max Roach, de um Tony Williams e de um Tony Allen (e até de um Squarepusher) foram vistas aqui neste concerto, trazendo consigo o teclista Renato Paris, Quinn Olton no saxofone e Artie Zaitz na guitarra, membros com quem já toca há cinco anos. “Este é o Moses Boyd, esta é a música que ele cria”, disse-nos sobre como pretendia ser visto como artista, alguém que “procura sempre algo que o entusiasme, que gosta de se desafiar e de ultrapassar as barreiras do que considera interessante, seja um conceito, um som ou uma colaboração”.
Foi este espírito livre e em constante transformação que encontramos em Matosinhos, ainda antes da hora de início do concerto. Por lá passamos a meio da tarde e vimo-lo a ensaiar e já às cinco e meia havia chegado com a sua trupe. Reconhecendo a importância de “Dark Matter” na sua carreira, do valor que lhe trouxe junto do público, também realçou que tem trabalho constante a fazer e que um novo álbum está à porta. Alguns desses registos podiam ter-nos sido apresentados no dia do concerto, mas não foi o caso, dado que escutamos os melhores tons deste disco. Foi logo a abrir com “Stranger Than Fiction”, quiçá o tema mais conhecido do grupo, e foi uma hora de jazz a médio tom até a uma hora e cinco minutos depois do arranque, colmatado pela vibrante “BTB”.
Uma nota relevante para a reiterada valorização que Boyd fez ao público e aos seus acompanhantes, apresentando-os regularmente e dando-lhes espaço para solos. Não consideramos nenhum destaque individual no grupo, dada a homogeneidade positiva da música por eles transmitida ao público numeroso que se colocou em meia-lua perante o coreto do Jardim Basílio Teles. Talvez não tão numeroso quanto havia sido em Alfa Mist, há dois anos, ou em Kamaal Williams, há um, mas não deixou de ter direito a muitos rostos infantis a acompanharem os seus pais, assim como alguns conflitos canídeos que, por vezes, interferiram com o fruir da hora de música. No entanto, é preciso compreender a envolvência e as características do espaço, um jardim público onde todos são bem-vindos e onde a música é uma convidada e não é moradora.
Mencionamos a questão do médio tom dado que nos colocamos de lado – ao pé do novo grafismo que Dino d’Santiago deu à capa do álbum do trompetista Eddie Gale “Ghetto Music” (1968) – à parte da frente do palco. Não havia grandes barreiras à emissão do som, multiplicada pelas colunas colocadas em redor do referido palco, tanto que ouvimos bem a emissão da Smooth FM que costuma antecipar os concertos. E, como tal, sentimos que o som não nos chegou da mesma forma, ficando um tanto ou quanto ligeiro e não nos envolvendo como esperávamos. Um jazz tão trepidante no formato de disco – e nada contra os intérpretes, que foram exemplares na sua prestação – que pareceu um pouco mole em relação ao impacto que poderia vir a ter. Mesmo assim, foi uma hora de bom proveito e de muito agrado – Boyd só sorria enquanto tocava a sua bateria -, mas, quiçá, pudesse ter sido mais, dado o estatuto de cabeça-de-cartaz.
Para o dia seguinte, estava escalonada uma das caras emergentes da Gondwana Records e o nome que mais nos interessava ver no cartaz: a formidável saxofonista Jasmine Myra. Com origens em Leeds, flutua entre esta cidade e a capital Londres e desenvolveu dois momentos discográficos de elevadíssima qualidade. Nota, assim, para os deliciosos “Horizons” (2022) e “Rising”, que chegou ao público neste mesmo ano. Trata-se, assim, de mais uma figura que traz jazz nas veias, na formação musical e nos instrumentos que toca, o saxofone e a flauta. Foi um achado de Matthew Halsall e companhia no ano de 2018, numa altura em que, no norte do país britânico, se desenhava um programa de novos talentos do jazz.
O jovem e irreverente elenco de Jasmine Myra foi, à imagem da equipa que desenvolveu o seu “Rising”, constituído pelo violoncelista Awen Blandford, o contrabaixista Sam Quintana, o guitarrista Ben Haskins, a harpista Alice Roberts, o baterista Greg Burns (a exceção, dado que George Hall não pôde vir), o teclista Jasper Green (que já tínhamos escutado em novembro passado com Halsall, tal como a Alice Roberts) e o clarinetista Arran Kent. Dias antes, a previsão meteorológica não era a mais favorável – nunca assistimos a nenhum concerto em Matosinhos com o céu sequer nublado – e a mesma foi confirmada, dado que a iminência de chover era constante.
Tudo isso não impediu que o agrupamento que subiu ao palco às seis horas, todo ele tão arrumadinho musicalmente, em ponto não cumprisse com tudo o que se antecipava para quem havia escutado Jasmine anteriormente. Foi um recital de jazz espiritual, com um momento ou outro mais arrojado e vigoroso (lembramos o concerto de Halsall, que foi mais nessa linha do que a espiritualidade que julgávamos). Todo ele com muita identidade de Jasmine Myra na música interpretada, tendo oscilado o repertório entre os dois discos. Ela que abriu o seu coração e o seu íntimo ao público, quase como se de uma entrevista se tratasse. Nós, que não a conseguimos entrevistar, agradecemos esses testemunhos.
Assim, falou-nos do quanto os seus álbuns nasceram do seu processo de superação e de reconstrução mental, muito promovido pela pandemia e pelos confinamentos. Vários momentos menos bons na sua vida pessoal alimentaram essa mó de baixo que encontrou dinamismo com a música e com os seus projetos discográficos. Falou-nos, também, da importância de degustar o processo e de ficar menos fechado aos objetivos finais de toda a viagem que se faz. O público, não tão numeroso quanto no concerto de Boyd, fez-se presente nessa tarde bastante cinzenta e cuja cor só veio da música, da moldura humana e dos foguetes que se faziam ouvir ali ao lado, por força das festas de São Sebastião, como havia acontecido no ano anterior. Para o efeito, a sugestão de antecipar ou atrasar o concerto, de forma a antever estes conflitos sonoros que feriram a atenção dada à música e às próprias intervenções de Jasmine.
A flor que uma pequena criança que subiu ao coreto do Jardim Basílio Teles ofereceu a Jasmine (o quão embevecida ela ficou) foi a materialização daquilo que nós achamos dessa hora de música: doce, subtil, espiritual e perfeccionista na execução e na tentativa de alcançar o belo e o profundo. Se se definisse o cartão de visita deste evento, talvez este concerto seja o que mais consegue captar essa sensação e essa perspetiva de um jazz deleitoso e tranquilo, com momentos de excessos e de instintos, mas que se realiza na harmonia. Talvez a única atenção técnica que possa ser feita é, de facto, o volume da música, que podia estar um tanto ou quanto mais alto mesmo na zona central, que foi onde estivemos durante o concerto, ao contrário da lateral no dia anterior.
Acabamos por não ir assistir a mais nenhum dos concertos anunciados, embora saudamos as presenças da virtuosa cantora de soul britânica Ego Ella May – concerto este que acabou por saltar para o salão nobre da Câmara Municipal de Matosinhos, mesmo à frente do jardim, por causa das previsões meteorológicas -, do baterista Mário Costa, no rescaldo do seu disco “Chromosome” (2023), e, especialmente, do vibrafonista portuense Eduardo Cardinho (fica o convite para um saltinho ao álbum lançado este ano “Not Far From Paradise”). Apesar disso, é difícil não dizer que não foi mais uma edição digna de um conceito do Matosinhos em Jazz que se consolida todos os anos e que faz as delícias de um público tão diversificado, desde famílias a melómanos que lá vão ter por sua própria conta e risco.
Mesmo com um cartaz não tão sonante e com condições climatéricas tão oscilantes e imprevisíveis, notamos esta afeição bem presente e viva, sempre com gestos de aclamação e de agrado para com os artistas que vimos subir ao coreto do Jardim Basílio Teles. Contudo, não são dispensados alguns ajustes para melhorar a experiência, desde a possibilidade de maior flexibilidade horária, o refinamento técnico e mais etiqueta de concerto, sem tantas conversas paralelas entre os espectadores. Não obstante, as saudades serão atenuadas por um evento aqui e ali, mas não ouvir o tema “Stormy Weather” e o “Smooth FM” antes de um concerto num jardim sabe a pouco. Assim, só resta torcer pela rápida vinda de mais um julho.