O nosso triste fado
Dizem-nos que a habitação é uma aspiração, não um direito. Escrevo este texto de um quarto de um T4 em Lisboa onde habitam 5 pessoas, que legalmente só devia ser um T3. Mas não pensem que é um queixume inconsequente, tenho noção que sou bastante privilegiada tendo em conta o panorama.
Sou amiga de casais que não se separam porque não conseguem suportar os custos de abandonar a renda que têm, conheço colegas estagiárias, no seu início de vida laboral, que vivem em quartos sem janelas e com baratas na cozinha, e ouvi a história da trabalhadora da limpeza do meu local de estágio, que até há duas semanas vivia com os filhos abrigada na Estação do Oriente.
Em boa verdade, são raras as pessoas de classe média e baixa que conheço e que têm uma boa experiência no acesso à habitação. Se quem acha que a habitação é apenas uma aspiração e não uma necessidade conhecesse casos destes, talvez mudasse de opinão.
Perante uma emergência social, onde verificamos que o aumento de preços das rendas de 2022 para 2023 rondou os 20% nos centros urbanos, o Governo apresentou uma panóplia de miragens, que nem perfazem um cartaz, com raras exceções. Temos um conjunto de medidas com um efeito, se existir, a muito longo prazo, e outras que nem praticidade têm.
A medida mais discutida e debatida no comentário político foi o arrendamento coercivo de devolutos privados. Repare-se, o maior detentor de devolutos é o Estado. Só em Lisboa, mais de 2000 potenciais fogos de habitação devolutos são propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Em vez de fingir que tem a capacidade burocrática de avaliar todos os devolutos privados, e acionar processos a tempo de resolver a crise da habitação, talvez fizesse sentido que o Estado português colocasse o seu património imobiliário para habitação social, que perfaz apenas 2% do parque habitacional.
Ainda, levanta-se o fim dos Vistos Gold com muito orgulho, que provocou um boom de construção de imobiliário de luxo num mercado habitacional já sobreaquecido, mas não se toca nas borlas fiscais aos nómadas digitais, que com salários e taxação muito mais competitiva do que os próprios portugueses provocam um óbvio desequilíbrio de poder de compra, inflacionando ainda mais o mercado. Beneficiamos fiscalmente todos, exceto os trabalhadores portugueses.
Existe outro ponto que tem de ser tratado com a maior das seriedades. Não tenho dúvida nenhuma que o alojamento local permitiu revitalizar os centros urbanos numa altura que poucas pessoas lá queriam viver. Permitiu que várias empresas que fornecem os alojamentos locais criassem riqueza, e permitiu o desenvolvimento do comércio local e da restauração. Contudo, quando verificamos que chegámos a uma situação em que a mancha do alojamento local em algumas freguesias de Lisboa é superior a cidades como Paris e Barcelona, atingimos um ponto em que a suspensão de novas licenças nestes centros urbanos é absolutamente lógica.
Porém, e embora o problema da habitação se agudize em cidades como Lisboa e Porto, não se restringe aí. Uma medida que considero absolutamente fundamental é a simplificação de licenciamentos para construção. Basta viver em cidades como Coimbra, em que o processo burocrático desde submissão de projeto até iniciar a construção pode demorar 3 anos, e perceber o pesadelo que é tentar construir uma casa.
Apesar de considerar que diagnosticar o problema é o primeiro passo para a sua resolução, ficar por aí não chega. É necessário apresentar soluções. O mercado imobiliário está demasiado voltado para a propriedade de imóveis, versus o arrendamento. Portanto, tornar apelativo colocar imóveis no mercado de arrendamento tem de ser a principal prioridade de quem queira aliviar o mais rápido possível o constrangimento do lado da oferta. Temos, segundo os últimos Censos, mais rendas abaixo de 50€ do que rendas acima de 1000€ em Lisboa. Beneficiar fiscalmente os senhorios destas rendas baixíssimas não tem impacto absolutamente nenhum. Mudar o foco para beneficiar em sede de IRS quem retire imóveis de desuso e os coloque no mercado de arrendamento é a forma de garantir que não seja apenas uma minoria que escolha entrar no mercado de arrendamento, e sempre a preços exorbitantes.
Temos uma das percentagens do parque habitacional alocadas a habitação social mais baixas da Europa ocidental, e portanto, a reabilitação de devolutos do Estado para este fim, e arrendamento acessível, permitiria não só aliviar a carência habitacional como servir de impulsionador de baixa de preços do próprio mercado.
Não podia terminar esta reflexão sem deixar claro que perdemos o comboio numa peça fundamental deste debate. Existe uma grande quantidade de pessoas que migram para grandes centros urbanos por necessidade profissional, e não porque lá querem viver. De facto, não usámos a experiência da pandemia com o rasgo que permitiria que muitas pessoas não perdessem horas do seu dia em transportes, e inclusive que pudessem viver nas suas zonas onde preferiam viver, por não termos sido céleres na transição digital. Existem organismos do Estado em que os trabalhadores realizam trabalho 100% digital e mesmo assim têm de se apresentar fisicamente na sede pelo menos 3 dias por semana, levando ao ridículo de pessoas estarem a reunir via Webex no mesmo edifício, mas serem forçados a lá estar de corpo presente.
Por fim, espero que as ruas do país se encham este sábado. Somos uma verdadeira geração à rasquinha. O problema de habitação é intergeracional, contudo, para nós é sintomático de algo aterrador: eternizam-nos na juventude, porque vivemos num país que não nos permite ser adultos.