“O Ornitólogo”, de João Pedro Rodrigues: o cinema português está vivo e de boa saúde

por Gabriel Margarido Pais,    19 Outubro, 2016
“O Ornitólogo”, de João Pedro Rodrigues: o cinema português está vivo e de boa saúde

Tivemos a oportunidade de assistir à antestreia do aguardado filme O Ornitólogo, realizado por João Pedro Rodrigues. Muito foi escrito na imprensa nacional sobre este filme, desde os seus problemas financeiros, passando pela distinção de melhor realizador no festival de Locarno, até às recentes críticas ao filme. De facto, é uma produção já com uma longa história, que despertou o interesse de um grande número de pessoas, e isso fez-se sentir na antestreia do filme no Dolce Vita Monumental, sendo que esta foi uma das antestreias com mais público do ano. O filme, que chegou a correr o risco de só ser mostrado em solo nacional em 2017, chegou com estrondo à tela do Monumental, e as opiniões recolhidas foram todas muito calorosas.

João Pedro Rodrigues era convidado de honra, e, antes do filme começar, dirigiu algumas (poucas, mas sentidas) palavras à equipa que o acompanhou nesta fantástica aventura, e ao seu companheiro por o apoio que lhe dá todos os dias há vários anos. Foi mais uma palavra de apreço por parte do homem que, aquando da consagração do filme com o prémio de melhor realizador, teve o seguinte a dizer: «Dedico o prémio aos que trabalharam comigo. Só foi possível fazer ‘O Ornitólogo’ com as pessoas que acreditaram no filme – são pessoas que, apesar de ainda não terem sido pagas, não deixaram de trabalhar».

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O realizador falou em tempos do que sente pelo festival de Locarno, dizendo que «Locarno aposta num cinema mais radical, mais pessoal e ousado», sendo que pessoal e ousado seriam as duas palavras mais corretas para descrever também O Ornitólogo. Este é acima de tudo um filme muito íntimo, e isso chega ao público sob a forma de um carinho especial para com o filme e para com os que nele estiveram envolvidos que não se encontra em muitas produções. O filme relata as aventuras e desventuras de um ornitólogo que, numa das suas viagens para observar aves, se depara com personagens caricatas: algumas delas perigosas e outras de confiança, algumas estranhas e outras quase míticas. Todo o filme é uma referência à viagem e percurso de vida de Santo António, sendo que esse paralelismo chega ao extremo quando o nome do personagem principal é alterado de Fernando para António (tal como Santo António, nascido Fernando de Bulhões). Fernando (ou António) chega inclusive a pregar um sermão aos peixes!

Tendo este filme ganho um prémio para melhor realização, as expectativas quanto a esta componente do filme eram bastante altas, mas mesmo assim conseguiu surpreender-nos. O filme consegue, de maneira sublime, captar a intimidade distante da ornitologia, a beleza surreal da natureza em volta dos atores, a vibração de cores intensas dos fatos pomposos de alguns personagens e a natureza sempre diferente das relações humanas no filme criadas. Neste aspeto, tudo o que podia ter sido bem feito, foi, e, aliando um olho especial para o detalhe e a beleza intrínseca dos cenários a uma originalidade fora de série (nomeadamente quando se tratava de captar planos menos usuais), João Pedro Rodrigues conseguiu criar uma jóia da realização portuguesa em O Ornitólogo.

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Outro dos pontos fortes do filme foi o seu trabalho de som. À boa maneira portuguesa, este é um filme com quase nenhuma música, e neste caso isso foi uma aposta ganha. O som ambiente, sempre muito presente, sem grandes invenções, tornou o filme muito realista quando este tinha de o ser, e os efeitos sonoros intensos e dramáticos foram encaixados de maneira exemplar nos momentos de mais tensão do filme. Na sessão de antestreia notámos, no entanto, que o som podia ter estado um pouco mais baixo – chegou a existir alguma ressonância indesejada na sala de cinema. Este é um filme com uma diversidade de sons enormes, sejam eles naturais, humanos ou fabricados em pós-produção, e a equipa conseguiu aliá-los e incorporá-los onde o filme assim o pedia.

O ator principal desta produção é Paul Hamy (Mon Roi), e mais uma vez carimbou uma performance de grande qualidade, num papel que exigia muita boa vontade e perseverança da sua parte. Física e emocionalmente, o papel principal d’O Ornitólogo não seria algo fácil para a maior parte dos atores, e certamente Hamy foi uma boa escolha. A voz de Paul Hamy nunca aparece no filme, pois todas as falas da sua personagem foram dobradas pelo próprio João Pedro Rodrigues. Compreendemos esta escolha, e percebemos qual a intenção do realizador ao fazê-lo, mas consideramos que o filme perdeu um pouco por não ter sido a voz de Hamy a figurar na versão final do filme. A voz de João Pedro Rodrigues aparece no filme como um pouco monótona e plana, um bemol contínuo num filme que pedia bastantes variações e vários graus de intensidade a mais do que aqueles que a dobragem conseguiu transmitir. Esta monotonia é algo comum na dobragem, e ultimamente desculpável, mas pensamos que o filme teria muito a ganhar ao contar com a voz em cena de Paul Hamy.

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Será esta a única crítica a uma produção que lutou contra tudo e contra todos para se fazer acontecer, garantindo um lugar nas páginas da revista Cahiers du Cinéma como um dos 12 filmes mais esperados de 2016, ao lado de filmes como Juste la fin du Monde, de Xavier Dolan e Sully, de Clint Eastwood. O enredo, a execução exímia, o som fantástico, a produção incansável e o conglomerado de pontos extremamente fortes deste filme levam-nos a considerá-lo um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos. O cinema português (felizmente) tem visto algumas das suas produções a cativarem um público mais largo do que em anos passados. A Trilogia das 1001 Noites de Miguel Gomes e Montanha de João Salaviza são provas disso. O Ornitólogo será certamente o próximo filme a entrar nesta casta, e em Novembro chega aos cinemas São Jorge, de Marco Martins, o filme que valeu a Nuno Lopes o prémio de melhor ator na secção «Orizzonti» no festival de Veneza. São produções como esta que provam que o cinema português está vivo e de boa saúde!

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