O pântano
Acordar a 7 de novembro e olhar para a notícia de que o chefe de gabinete do primeiro-ministro tinha sido detido levou-me a uma inexorável sensação de déjà-vu. Mesmo assim, não foi imediatamente claro se António Costa tinha chegado ao fim da sua carreira política, ou apenas tinha sido capaz de perseverar na sua inesgotável sorte diante de escândalos políticos. Ainda assim, quando retornou pela 2ª vez a Belém, permanecendo apenas 13 minutos, já era provável a sua demissão. Ao ser tornado público o comunicado da Procuradoria Geral da República, com o seu agora infame último parágrafo, esta tornou-se uma questão de tempo.
E eis que no início da tarde, e com 35 minutos de atraso, António Costa declara que apresentou a sua demissão ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fazendo duas declarações que comprovam o seu estilo de governação.
Primeiramente, o mesmo primeiro ministro que sempre defendeu que os seus inúmeros ministros e secretários de estado constituídos arguidos em processos que divergem desde corrupção, a favorecimento ilícito, apenas seriam por ele demitidos se os processos transitassem em julgado, mantém que se demite sem sequer ser constituído arguido em algum processo.
“Portugal não perdoará os diferentes partidos que se apresentem a eleições não apresentarem propostas claras de como reformar a relação do Estado com negócios opacos, com fins tristemente pouco transparentes.”
Em segundo lugar, ao ser questionado sobre se no caso de novas eleições se recandidataria, respondeu que não, até porque pelos timings da justiça acredita que demoraria a provar a sua inocência. Ora, desde 1999 António Costa só não foi membro de sucessivos governos nos anos em que foi eurodeputado e presidente da Câmara de Lisboa, sendo que nos últimos 8 anos foi primeiro-ministro. Queixar-se da lentidão da justiça, com este currículo, é risível. É especialmente risível quando foi ministro da justiça do governo de Guterres, e quando nos seus mandatos como primeiro ministro encontrou no líder da oposição, Rui Rio, disponibilidade para reformar a justiça, e recusou continuamente fazê-lo.
É importante referir que António Costa não se demitiu por um parágrafo de um comunicado, nem por um suposto golpe institucional do Ministério Público, porque este não aparece do vácuo. Aparece sim na sequência da detenção do seu chefe de gabinete, Vítor Escária, retirado da raspagem do fim do barril do Socratismo mais recôndito que ainda perdurava nas cúpulas do Partido Socialista, apontado por António Costa já tendo conhecimento do seu envolvimento no Galpgate.
Aparece também depois da detenção de Diogo Lacerda Machado, melhor amigo de António Costa, que trabalhou como consultor/facilitador não nomeado e não escrutinado de ambos os últimos dois governos do Partido Socialista. É uma daquelas amizades muito típicas de um certo ciclo de elites políticas: saiu da Faculdade de Direito de Lisboa, permitiu António Costa recomendar o padrinho de casamento e melhor amigo para secretário-adjunto para a administração e justiça de Macau, e mais tarde depender do mesmo para fechar processos como a negociação dos lesados do BES, a contenda entre Isabel dos Santos e o Caixa Bank, e mais recentemente o processo TAP. Se não fosse tão preocupante como funcionam as negociatas políticas deste país até poderia ser poético.
É portanto incompreensível para mim quem até à madrugada de 9 de novembro colocava em causa a idoneidade do Ministério Público, da Procuradora Geral da República e do procurador que cumpriu o seu dever ao enviar o processo em que visa o primeiro ministro para o Supremo Tribunal de Justiça. Torna-se especialmente incompreensível quando são as mesmas pessoas cujo comentário político se centra à volta do Chega e do seu perigo para a democracia. Como é que colocar em causa a credibilidade das instituições judiciais ajuda ao combate à extrema-direita?
Contudo, dia 9 de novembro agudizou ainda mais o problema. Foi revelado que nas buscas ao escritório em São Bento do chefe de gabinete de António Costa foram encontrados 75 mil euros em numerário escondidos em livros e prateleiras. Perante o sórdido da situação, foi-nos garantido pelo advogado de Vítor Escária que este valor correspondia a uma atividade prévia às suas funções como chefe de gabinete do primeiro ministro, sem, contudo, explicar porque estavam então os 75 mil euros no seu escritório em São Bento.
No mesmo dia, Marcelo Rebelo de Sousa informa que irá dissolver a Assembleia da República após aprovação final geral do orçamento de estado, convocando eleições a 10 de março de 2024, meros dois meses antes das eleições europeias. Desta forma, Marcelo, o eterno estadista, garante que todas as obrigações decorrentes do orçamento de estado se encontram salvaguardadas, e que o país não fica seis meses em duodécimos, tal como permite tempo suficiente para o Partido Socialista fazer a sua disputa interna de forma serena antes de ser confrontado com eleições.
É impossível de vaticinar o resultado das próximas eleições neste momento, e certamente que será tema de variadas crónicas futuras. No entanto, não consigo deixar de terminar esta sem expressar o meu pesar profundo por abrir jornais internacionais e ler que o primeiro ministro português se demitiu na consequência de um escândalo de corrupção à sua volta.
Com todas as salvaguardas da presunção de inocência, não considero que qualquer primeiro ministro com tão vincada e conhecida teia de influências à sua volta tenha alguma condição de permanecer no cargo. E por fim, depois disto, tenho a certeza que Portugal não perdoará os diferentes partidos que se apresentem a eleições não apresentarem propostas claras de como reformar a relação do Estado com negócios opacos, com fins tristemente pouco transparentes.