O passado e o presente do Cinema Português. Será tudo uma questão de montagem?
Não será arriscado afirmar que o cinema português foi, até à década de 50, um dos mais fortes no panorama europeu. Essa projecção internacional só não era maior devido à enorme clarividência do mercado soviético e germânico, mas a nível de qualidade e visão foi sem dúvida um dos maiores impulsionadores de um estilo ligado às raízes e origens de um povo, o cinema de autor.
Similar ao cinema soviético de Sergei Eisenstein (“O Couraçado de Potemkine” e “A Greve”, ambos de 1925) e Dziga Vertov (“Sixth Part of the World” de 1926 e “O Homem da Câmara de Filmar” de 1929), com um estilo de montagem frenético e temas relacionados com o povo (classe proletária), mecanização e industrialização do país, este “antigo” cinema português mostrava ao mundo que em nada ficava atrás da sua principal inspiração.
A qualidade a nível técnico só foi possível graças ao incrível trabalho de José Leitão de Barros, que em 1929 nos presenteia com o seu documentário sobre os pescadores da Nazaré e o mar como personagem principal, “Nazaré, Praia de Pescadores”. Um ano mais tarde, convida-nos a visitar este mesmo local, mas agora em forma de narrativa complexa com personagens e uma história envolvente em “Maria do Mar” (1930), uma das maiores obras de sempre do cinema português, com especial destaque à fotografia e, claro, à montagem. Nestas duas obras, o mar assume um papel fulcral como personagem incontrolável, assim como os comboios e toda a indústria dos filmes soviéticos, no seu frenesim inquietante, dando ao espectador uma sensação de sufoco e ansiedade, com cortes rápidos e bruscos. Aqui quem manda é o mar e Leitão de Barros sabe retirar o melhor dessa situação e transpô-la para o grande ecrã.
Maria do Mar, 1930, filme de José Leitão de Barros
O cinema de José Leitão de Barros continuou a impressionar a crítica até ao final dos anos 40, altura em que entramos numa fase de estagnação do cinema português, também devido ao regime em vigor. O futurismo técnico e narrativo do cinema português, aliado à sua génese, ao povo, aos trabalhadores e à simplicidade foi travado e isso teve graves repercussões na qualidade e produção do nosso cinema, tanto que Manoel de Oliveira, que, em 1942 assina a obra prima “Aniki Bóbó”, só regressa às longas metragens em 1963. Como curiosidade, fica a referência para a curta metragem “A Caça” de 1964 e deste cineasta portuense, onde assistimos a um momento incrível de suspense e thriller em apenas 21 minutos.
Aniki Bobo, 1942, filme de Manoel Oliveira
Ainda na década de 20, assistimos a duas obras portuguesas de grande qualidade, filmadas por um francês apaixonado pelo nosso país, Roger Lion. “A Sereira de Pedra” (1923) e “Os Olhos da Alma” (1923), este último ainda sobre a Nazaré, trazem novamente a génese da cultura portuguesa da época, o trabalho ainda não mecanizado, ligado à terra, ao mar e às mãos de cada um dos trabalhadores. Aliás, os rostos de cada um dos actores de “Maria do Mar” e “Nazaré, Praia de Pescadores” (1929) são, em tudo, idênticos à captação soviética dos rostos dos trabalhadores russos. Esta atenção dada às caras, mãos e situações específicas espelham, não só a alma de um povo ligado ao trabalho, mas também o sofrimento e a pobreza deste mesmo povo.
O próprio Manoel de Oliveira, piloto de corridas de automóveis, foi também um dos grandes impulsionadores do cinema da década de 20 e 30, com vários documentários relevantes, sendo o “Douro, Faina Fluvial” (1931) o mais importante, um olhar sob a sua cidade natal, o Porto, e sobre a zona circundante à cidade do norte do país. Este retrato natural, com uma identidade própria, era do melhor que se fazia pela Europa nesta época, e é graças a todas estas obras referidas que nunca é demais afirmar que o cinema português da década de 20 e 30 era dos melhores cinemas que existia por essa Europa fora. Como em tudo na nossa história, acabamos por ser nós próprios a impor um limite a essa qualidade e domínio.
Até há bem pouco tempo, o cinema português não tinha projecção internacional, muito devido à enorme falta de identidade que se sentiu nos anos 70 e 80, com alguns filmes interessantes, mas poucos apoios, poucas condições e poucas ideias. Será injusto chegar à década de 2000 e não referir aquele que foi também um dos maiores nomes do cinema português dos últimos 40 anos. Este é João César Monteiro, um realizador que produziu inúmeras obras de qualidade num estilo que quase desapareceu após os anos 60 em Portugal: a comédia, mas um estilo de comédia muito próprio, com uma identidade marcada pela personalidade do seu próprio criador, uma pessoa à frente do seu tempo e com uma irreverência muito própria. Não é demais afirmar que, se João César Monteiro fosse, por exemplo, francês, o seu sucesso internacional hoje em dia seria bastante mais superior.
Ossos, 1997, filme de Pedro Costa
Chegamos à década de 2000 (e já anteriormente com Pedro Costa e algumas obras de Manoel de Oliveira, João Botelho e Ricardo Costa) e assistimos a um grande salto de qualidade do cinema português, um ressurgimento do mesmo como obra intelectual e tecnicamente evoluída, nomeadamente com cineastas como João Salaviza (“Montanha”), Miguel Gomes (“Tabu”, “As Mil e uma Noites”), Pedro Costa (“Juventude em Marcha”, “Cavalo Dinheiro”), Marco Martins (“Alice”, “São Jorge”) e João Pedro Rodrigues (“Odete”, “O Ornitólogo”). Este “novo” cinema português é também caracterizado pelo regresso à nouvelle vague francesa, com vários planos longos, estáticos, montagem cuidada e mais lenta (menos cortes rápidos). Esta visão virada para a atenção aos detalhes, à beleza de cada plano e dos seus enquadramentos, dá mais espaço para o espectador respirar, mas, ao mesmo tempo, torna a narrativa mais lenta, mais “aborrecida” para quem bebeu apenas a inspiração americana dos anos 70, 80 e 90. Esta afirmação não é, de todo, uma crítica à qualidade das obras produzidas, apenas uma lembrança da falta de qualidade do cinema português comercial.
Montanha, 2015, filme de João Salaviza
A nova identidade do cinema português, com uma nova elegância técnica, fez com que a sua qualidade aumentasse e com que o reconhecimento internacional viesse rapidamente. João Salaviza já ganhou prémios no Festival de Berlim e no Festival de Cannes, dois dos mais reconhecidos festivais internacionais de cinema, assim como Miguel Gomes, não em Cannes, mas em muitos outros por esse mundo fora. O mesmo reconhecimento tem tido Pedro Costa, Marco Martins e João Pedro Rodrigues, o que só reforça este aumento de qualidade verificado pós 2000.
É verdade que, para o público comercial, o cinema português vive actualmente de obras de narrativa lenta, imitações terríveis do cinema americano de blockbuster e remakes desnecessários que em pouco contribuem para a qualidade do seu cinema, mas é nesse mesmo cinema “lento” que observamos o melhor que nós, portugueses, podemos criar e mostrar ao mundo. Podemos não ter a qualidade de produção de muitos outros países europeus, mas temos a qualidade técnica e criativa. Também é verdade que, actualmente, não existe um João César Monteiro no cinema português, alguém que, de forma refrescante, agite a construção cinematográfica, crie uma nova identidade actual e chegue a um público mais vasto, aquele que esgota as salas para ver remakes vazios de grandes obras portuguesas, mas que não sabe que lá fora somos reconhecidos por algo muito mais genuíno que isso (talvez Miguel Gomes?).
O que agarra o espectador português ao nosso cinema? Serão os actores, o mediatismo, a narrativa mais rápida e directa, ou será tudo uma questão de montagem?
São poucos os bons blockbusters portugueses, existe pouco bom cinema para as massas, mas existe um caminho alternativo que tem vindo a ser traçado com poucos apoios por inúmeros realizadores jovens e que serão, sem dúvida, o futuro deste país. Força Leonor Teles, André Marques, Pedro Augusto Almeida, Gabriel Abrantes, Gonçalo Tocha e tantos mais.