O peso da chuva e as relações no cinema de Makoto Shinkai
Como se diz “gosto de ti” a alguém num universo diferente do nosso?
Makoto Shinkai tem-se afirmado cada vez mais internacionalmente, além do já afamado estúdio Ghibli, no plano da realização e animação japonesa. Engraçado que, no seio dos aficionados pelo mundo anime, é-lhe apontada uma zona de conforto curiosa — as relações, a forma como estas são retratadas e, se possível, sempre ou quase sempre com a chuva em primeiro plano. Evidencia-se esta zona de conforto, na verdade, porque o retrato das relações, principalmente das relações juvenis, além da fantasia ou do paralelismo que se estabelece com o mundo mitológico, ocupa um espaço bastante importante naquilo que caracteriza, de facto, os anime japoneses — e Makoto Shinkai é mestre na forma como o faz. Mas há uma constante nesse retrato que acaba por ser a sua assinatura: dois seres que gostam um do outro e têm dificuldade em expressá-lo, ou não se dão conta disso, até porque vivem em planos diferentes, em mundos paralelos ou períodos temporais não coincidentes.
Há sempre esta impossibilidade, principalmente provocada por um jogo interessante com a linha do tempo ou a linha cronológica dos eventos, que parece afastar ou tornar impossível, de alguma forma, a relação dos protagonistas. Mas o mais interessante não é, ainda, este facto. O que torna a zona de conforto do cinema de Makoto Shinkai tão rica é o seguinte: não obstante os momentos de tensão dos seus filmes estarem bem construídos e quase nos levarem às lágrimas, tudo nos levar a crer que sim, que os protagonistas foram feitos um para outro, trata-se de um universo que não nos deixa levar pelo romantismo piegas sem uma dose de realidade.
Ou seja, depois da acção passada, é como se os finais fossem, em si mesmos, uma espécie de regresso ao início, numa espécie de circularidade, em que os protagonistas se dão conta que têm de dar espaço a si próprios e ao outro para crescerem, para se conhecerem e para viverem. É como se, depois de tudo, lhes fosse dada uma segunda oportunidade para se conhecerem de novo. Fica a sensação de que a ordem dos eventos ou do que devia ser feito primeiro é trocada, sim, mas o que se encontra aqui é tudo menos uma disneyficação do desabrochar do mundo juvenil (e não juvenil). Não há, portanto, o “vou-te amar para sempre” garantido. Há uma inversão, há o “olá, como te chamas”.
Atentemos, por exemplo, no filme Your Name (Kimi no Na wa), que se enquadra perfeitamente nestas características: um rapaz e uma rapariga que vivem em localidades diferentes trocam de corpo enquanto sonham e, durante o decorrer dos eventos, tomam consciência um do outro, ou seja, de que existem. Após algo tão imersivo como viverem, literalmente, na pele um do outro, quando se encontram, no plano real, frente a frente, depois de tudo o que passaram, fazem algo tão simples como perguntarem um ao outro o nome. No filme Suzume (Suzume no tojimari), durante a maior parte do decorrer da acção, um dos protagonistas transforma-se num banco enquanto a outra protagonista permanece como humana. No final, há a tentativa de resgaste de um dos protagonistas de um mundo qualquer paralelo, faz-se de tudo para se salvar aquele que se ama, mas permanecem os dois em localidades diferentes e com a promessa de se visitarem.
Em Garden of Words, um filme que por si só constitui uma ode à chuva e realismo em animação, com planos extremamente bem feitos, um jovem e uma jovem professora que, em princípio, nem sequer se deviam envolver, (lá está, mesmo sendo um filme mais realista, o par romântico não deixa de viver em universos diferentes), no final constata-se, mesmo que pareça que o casal tenha conseguido encontrar o seu espaço idílico, que a vida tem de continuar com as suas fases, evolução e etapas, sem estas se sobreporem. Mesmo em Weathering With You (Tenki no Ko), o processo se repete com a mesma mensagem: dois jovens que se apaixonam mas que correm o risco de viverem separados porque o par pode ficar perdido para sempre, outra vez, num qualquer universo ou dimensão paralela. Talvez, de todos estes filmes, seja aquele com um final mais apaixonado, no sentido em que há um abraço sentido e um “vai tudo ficar bem”, mas, mesmo assim, é como se houvesse, de novo, uma promessa de início em que não se sabe o que vai acontecer, apenas a premissa de aventura que todas as vidas transportam em si mesmas.
A chuva, presente em quase todos estes filmes, é a poesia, é a tensão, é a purificação e limpeza, é a destruição e a revitalização. E não nos esqueçamos que embora os anime estejam intrinsecamente ligados ou a um mundo mitológico ou fantástico, oferecem-nos, como espadas, as maiores das realidades, da forma mais concreta possível: não se pode amar alguém sem se saber o nome, não se pode amar alguém sem se viver uma vida própria.
Apesar do fantástico não ficar descurado em Shinkai, este realizador vai mais além no universo realista se considerarmos, por exemplo, que o retrato que faz de Tóquio corresponde, na realidade, a espaços reais da capital japonesa. Há a primazia e o realismo do espaço e traço, aliados a um espaço sideral com cores oníricas, que estabelecem uma união muito bem construída. E quanto a uma zona de conforto dos enredos, no fim das contas não é algo grave, que destoe, que fique mal ou que seja reprovável, pelo contrário. Faz-se apenas a ponte com quem descobre paixões na adolescência ou no início da idade adulta e ainda está a aprender a resposta a esta pergunta: como se diz “gosto de ti” a alguém num universo diferente do nosso?