O polémico Mundial de Futebol 2022 do Qatar
Desde Dezembro de 2010 (aquando do anúncio) já morreram mais de 6,5 mil migrantes em construções relacionadas com a competição, avançou o jornal inglês The Guardian, em Fevereiro deste ano.
Estávamos em Dezembro de 2010, quando o Qatar foi anunciado como o país acolhedor do mundial de 2022. Ao tratar-se de um Mundial, a localização desta prova vai mudando ao redor do mundo para ir dando oportunidade a todas as regiões de poderem disfrutar do torneio mais importante no mundo do futebol. Vejamos a últimas 5 localizações: Rússia (2018), Brasil (2014), África do Sul (2010), Alemanha (2006) e Japão (2002). Para se ter uma ideia, de acordo com a Statista, em média durante o decorrer do jogo, cerca de 562 milhões de pessoas assistiram à final do Mundial da Brasil em 2014 disputada entre a Argentina e a Alemanha. Quando um país recebe um torneio destas dimensões investe muitos recursos para construir as infraestruturas necessárias para acolher todo o mundo. Em concreto, menciono estádios, estradas, hotéis, restaurantes, etc. Um mundial vai muito para além de um evento desportivo, tem naturalmente um carácter social, uma oportunidade para o país acolhedor mostrar a sua cultura ao mundo, atrair investimentos para a economia local e deixar boa imagem a tanto turista para estes quererem voltar. Por outro lado, o modelo de negócio da FIFA é altamente dependente do Mundial, já que a maioria dos seus contratos comerciais estão relacionados com o grande evento. A título de exemplo, a FIFA espera encaixar cerca de 4,6 mil milhões de euros com o Mundial do Qatar.
Desde o anúncio de 2010, que o Qatar tem vindo a trabalhar dia e noite para planear e construir todas as infraestruturas necessárias, com destaque para os estádios onde vão decorrer os jogos e onde se centra o principal interesse do público e o principal gerador de valor. Os jogos estão planeados para 8 estádios que misturam construções desde o zero e obras de melhoramento de estádios já existentes. O visual de cada um deles é bastante moderno, sem deixar de capturar traços arquitetónicos característicos do Médio Oriente, veja-se o estádio Al Bayt a título de exemplo.
No entanto, este já está a ser um dos Mundiais mais polémicos da história. É comum haver notícias sobre atrasos nas obras antes deste tipo de prova começarem, mas o que não é comum, e muito menos aceitável são as notícias sobre temas que violam os mais elementares direitos humanos. De acordo com um noticia avançada em Fevereiro pelo The Guardian, desde Dezembro de 2010 (aquando do anúncio) já morreram mais de 6,5 mil migrantes em construções relacionadas com a competição. O relato avança que estes números correspondem a trabalhadores estrangeiros contratados da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. Isto significa que, aproximadamente, 12 pessoas destas nacionalidades morrem a cada semana de trabalho. O jornal avança que o número total de mortes será claramente superior já que esta estatística não inclui trabalhadores provenientes de outros países como, por exemplo, o Quénia ou as Filipinas. Um exemplo pode ser o de Mohammad Shahid Miah (Bangladesh) que, aos 29 anos, morreu eletrocutado quando uma inundação no seu alojamento, provocada pela chuva, entrou em contato com cabos elétricos expostos. Moahammad tinha investido 3,5 mil libras num agente recrutador para assegurar este seu último emprego.
Entre as diferentes causas de morte, a mais frequente é a de “morte natural”, ou seja, de causas naturais. No entanto, o The Guardian alerta que muitas destas classificações são atribuídas sem a realização de uma autópsia. Uma das grandes causas destas mortes está relacionada com o calor intenso no verão, que dura uns 4 meses e que provoca enorme stress aos trabalhadores, obrigando-os a começar de trabalhar muito cedo antes do pôr do sol. Ditas condições levam também a mortes por paragem cardíaca. Outras causas reportadas são o suicídio e os acidentes de trabalho. À data da publicação, “apenas” 250 mortes tinham sido provocadas pela Covid 19. No entanto, uma menção constante na investigação é a incoerência dos dados e as dúvidas sobre o seu tratamento. Falta transparência e, sem dúvida, que o assunto merece maior atenção e a verdade tem que vir a público.
O The Guardian contactou os responsáveis pela organização do Mundial no Qatar, os quais responderam com “Lamentamos profundamente todas essas tragédias e investigamos cada incidente para garantir que as lições foram aprendidas. Sempre mantivemos a transparência em torno dessa questão e contestamos as afirmações imprecisas sobre o número de trabalhadores que morreram nos nossos projetos.” Já a FIFA disse que a frequência de mortes nestas construções tem sido baixa por comparação com outras, sem partilhar evidências. Por outro lado, a Amnistia Internacional revela ainda que muitos destes trabalhadores chegam a estar 7 meses sem receberem o ordenado e que são vitimas de intimidação quando tentam confrontar as “mentiras”.
Grandes nomes do futebol mundial têm demonstrado o seu completo desagrado face a estas notícias. Uma das vozes ativas é Toni Kroos, médio alemão que joga no Real Madrid. Num podcast com o irmão Felix, afirmou que “Os imigrantes são submetidos a jornadas de trabalho contínuas, sob temperaturas de 50 graus, não são alimentados de forma condigna e não têm acesso a água potável”, denunciando ainda que estes não têm condições mínimas de segurança e cuidados médicos. Diz mesmo que foi má ideia organizar ali o Mundial, antes dos seus jogos de qualificação, numa clara alusão aos eventos acima descritos. Refere ainda que, naquele país, a homossexualidade é punida legalmente o que levou alguns trabalhadores a serem alvos de uma “certa violência”. Já a seleção da Noruega admite mesmo boicotar o Mundial.
Por tudo isto, este promete ser um dos Mundiais mais polémicos de sempre. Se a FIFA já se arrependeu, só eles o saberão. Uma coisa é certa, o direito a ter uma vida digna jamais pode ser renunciado, independentemente dos interesses que estejam em causa. A confirmarem-se os resultados desta investigação, a verdade deve ser partilhada com todos e as consequências devem ser pensadas de acordo com a gravidade da situação. Como disseram, e bem, as seleções que já protestaram: algo tem que mudar. O futebol é um desporto coletivo no qual vemos o “Homem em movimento intencional da transcendência”, como definiu o Professor Manuel Sérgio, e o Mundial é a sua competição suprema que junta todo o mundo a celebrar um desporto que nos une a todos e que honra a nossa diversidade cultural. Perante situações como esta, as instituições, antes de analisar dados ou ficheiros sobre diferentes cenários económicos, devem olhar-se ao espelho e perguntarem-se “Quem somos? Quais são os nossos valores?” e é daqui que sairá a resposta a como lidar com esta situação. Não é preciso complicar. Caso contrário, teremos um Mundial sujo de sangue, onde o público interessado em ver os jogos sentirá que está a financiar uma atividade que desrespeita os direitos básicos de muitas pessoas enquanto cidadãos e trabalhadores.
Sobre a ideia de sabotar ou não o Mundial, acho que tal decisão só poderá ser tomada depois de uma análise mais profunda e que confirme com maior evidência estas notícias chocantes. O leitor seria a favor de Portugal sabotar a prova caso se confirme isto? Uma coisa tenho certa: prefiro um Mundial jogado na rua com balizas feitas de paralelos, que um Mundial cujos estádios custaram vidas que deveriam ter sido evitadas com condições mínimas, prefiro um Mundial onde a baliza seja a porta da garagem do meu vizinho, que um Mundial onde as infraestruturas luxuosas estão manchadas de sangue.