O prodigioso jazz de John Coltrane
Foi em Julho de 1967 que um dos porta-estandartes dum estilo de música que contribuiu para a profunda atenuação da segregação racial partiu com somente 40 anos. Tendo deslumbrado com as magníficas composições musicais que elaborou, foi especialmente como saxofonista que John Coltrane conquistou o mundo, tendo construído uma orla de influência equivalente ao seu talento.
John William Coltrane nasceu a 23 de setembro de 1926 na recôndita vila de Hamlet, situada no estado da Carolina do Norte, pertence aos Estados Unidos da América. Fruto da união entre John Robert Coltrane e Alice Blair Coltrane, desde cedo que o menino Coltrane tomou contacto com a música pois o seu pai tocava ukulele e violino e a sua mãe cantava no coro da igreja à qual a sua família estava ligada, com o avô a ser um reverendo metodista. Já na escola, o pequeno, após experimentar clarinete na banda da escola, opta pelo saxofone alto após ouvir Johnny Hodges na banda de Duke Ellington.
Aliados a estes, as outras influências de Coltrane são Lester Young, Count Basie e os constituintes do grupo deste. Em virtude do início da Segunda Guerra Mundial, a família Coltrane muda-se para o estado da Filadélfia, onde John começa a atuar esporadicamente em bares. Em 1945, Coltrane foi designado para uma base naval da Marinha do seu país e despoletou no momento em que se juntou aos quadros da banda musical militar (denominada Melody Makers) ao tocar clarinete. Não tendo combatido durante esse período, o músico voltou para os bares que habitualmente frequentava e adquiriu os vícios tradicionais de um boémio da época, nomeadamente álcool e heroína.
Entrando em bandas como o grupo de Joe Webb, King Kolax Band do reputado saxofonista Charlie Parker e Howard McGhee All Stars, foi em 1949 que John Coltrane conheceu e foi convidado por Dizzy Gillespie para atuar na sua banda através do saxofone alto (tendo já experimentado o tenor). A sua primeira gravação sucedeu-se em 1951, numa música nomeada “We Love to Boogie”.
Frequentando de seguida o de Earl Bostic e o de Johnny Hodges nos anos seguintes, sendo expulso da deste pela dependência de heroína, Coltrane recebe um convite do trompetista Miles Davis para integrar a sua banda no verão de 1955. Juntou-se, assim, ao pianista Red Garland, ao baixista Paul Chambers e ao baterista Philly Joe Jones, com a presença ocasional de um outro saxofonista, Cannonball Adderley. Foi aqui que despoletou a carreira dourada do saxofonista, tendo assumido o protagonismo da mesma banda uns anos depois. Dentro do imenso repertório deixado pelo músico e desde a data acima apontada até aos nossos dias, destacam-se os seguintes:
Blue Train (1957)
Kind of Blue (1959, Miles Davis Quintet)
Giant Steps (1960)
My Favorite Things (1961)
Ballads (1962, John Coltrane Quartet)
Olé Coltrane (1962)
A Love Supreme (1965)
Meditations (1965)
Ascension (1966)
Interstellar Space (1967)
Afro Blue Impressions (1977, póstumo)
Blue World (2019, gravado em 1964)
Coltrane marcou também o panorama da música através de duas correntes que explorou. A primeira delas consistia no Free Jazz ou New Thing, que visava uma maior espontaneidade musical, quebrando um pouco mais com os cânones tradicionais de então e permitindo uma maior distinção da música produzida a partir de uma abordagem menos rígida. Quanto à segunda, denominada Avant-garde Jazz e como o próprio nome indica, baseava-se numa composição predefinida e, a partir desta, a improvisação dava-se potenciando os elementos mais clássicos e explorando ao máximo cada nota da composição de forma a conferir-lhe um caráter único e espontâneo, com esta atitude a ser resultante da New Thing. A seu lado, no seu quarteto, contava com o pianista McCoy Tyner, os contrabaixistas Jimmy Garrison, o baterista Elvin Jones
Um outro marco assinalável na carreira do compositor e saxofonista é o álbum lançado a 1965 e designado de A Love Supreme (estando contemplado na lista dos 200 melhores álbuns para a Rock n’ Roll Hall of Fame), que conjugava influências de diversas culturas africanas e asiáticas e, de forma agregadora, constatava a existência de uma entidade superior que não permitia que ninguém estivesse sozinho. Foi uma fase de grande estudo, que se desenvolveu entre o hinduísmo e o budismo, para além de alguns laivos da filosofia clássica da Grécia Antiga, e que o ajudou a superar o vício da heroína. O culminar desse período traz Om nesse mesmo ano, uma palavra que representa a infinita realidade do universo. São recitados excertos do “Bhagavad Gita”, uma escritura hindu, e do “Livro Tibetano dos Mortos”, a obra mais determinante da literatura Nyigma, que não é mais do que a escola budista tibetana mais antiga. A sua ambição era a criação de uma música verdadeiramente mundial e universal, capaz de transcender todas e quaisquer distinções étnicas existentes.
“Deus respira plenamente pelo meio de nós, tão suavemente que nem sentimos.”
John Coltrane e a sua perspetiva sobre Deus, estando esta associada ao álbum “A Love Supreme”.
John Coltrane faleceu a 17 de julho de 1967, traído por um cancro no fígado, que fora em muito resultado de uma vida leviana e de um vício corrosivo, sendo este o do álcool, no hospital Huntington de Long Island, Nova Iorque. Apesar de viver somente 40 anos, os que viriam a sucedê-lo nunca suprimiram o contributo que John Coltrane teve não só no mundo do jazz como no da música e até da arte no seu todo. Com um repertório extenso (mais de 100 álbuns gravados durante a sua vida), o músico catapultou o jazz para as constelações, especialmente quando se encontrava ladeado por Miles Davis, outra estrela do género. Num plano mais transcendental, acabou mesmo por ser venerado como santo, numa pequena comunidade religiosa africana de San Francisco, no estado da Califórnia. Como argumento, a presença de Deus na majestática música que Coltrane criou.
Outras constelações, como as do blues rock, psychadelic rock, latin rock e o emergente acid rock dos anos 70, abraçaram a que Coltrane protagonizou como uma das suas e como um exemplo a reverenciar e homenagear. Resume-se, assim, o legado de John Coltrane, um homem que nasceu para ser um role model para imensas gerações de músicos, para congregar todos os sujeitos que, por esta ou aquela particularidade, se desvirtuavam do consenso.
É este o poder da música, o de unir, o de engrandecer, o de partilhar os valores mais nobres da humanidade. E, com um dos melhores saxofonistas de todos os tempos a fazê-lo, a missão estava cumprida. Assim sendo, John Coltrane é uma indiscutível lenda da música.