O que há de tão especial em “Neon Genesis Evangelion”?
4 de Outubro de 1995. Os fãs de anime nunca vão esquecer esta data. Foi neste dia que a obra de Hideaki Anno, “Neon Genesis Evangelion”, começou a criar a sua história até se tornar um fenómeno de culto, obra máxima não só da animação japonesa como te toda a animação mundial.
A sinopse não era nova. Inúmeros animes tinham debatido e explorado a complexidade que é ser jovem e ter o poder de decidir o futuro da humanidade enquanto ainda nem definimos o nosso próprio futuro. O uso de Mechas também já tinha sido bastante explorado e os temas religiosos misturados com o avanço tecnológico era algo que alguns mestres como Mamoru Oshii ou Katsuhiro Otomo já tinham explorado. Sendo assim, quais foram as razões que levaram “Evangelion” a tornar-se neste gigantesco anime de culto por todo o mundo?
Em Portugal a série foi transmitida através de dois canais, SIC e Locomotion. Se por um lado a série é de uma complexidade extrema, tanto do ponto de vista filosófico como na sua violência, não sendo de todo acessível para uma criança (nem para um adulto), por outro o facto de ter passado nestes dois canais fez com que atingisse um vasto público no nosso país. Assim como “Dragon Ball”, “Sailor Moon” ou “Doraemon”, “Evangelion” entrou naquela categoria de “desenhos animados” para pessoas que não seguiam propriamente anime, algo que outras séries já não conseguiram. Este reconhecimento criou, passado tantos anos, um efeito nos seus espectadores, um forte sentimento de nostalgia. É com esse sentimento de nostalgia que chegamos ao lançamento da série na Netflix, algo que tem sido elogiado, mas criticado ao mesmo tempo. A crítica não se prende, obviamente, pelo lançamento do anime nesta plataforma, mas sim pelas inúmeras alterações a nível de dobragem (no caso americano) que alteram significados essenciais do original. Contudo, a língua japonesa tem um “problema”, é bastante ambígua, o que faz com que as traduções percam, em grande parte das vezes, a sua intenção original. O grande problema desta alteração em “Evangelion” é que a nova tradução retira grande parte das mensagens na relação homossexual entre duas personagens.
Noutro nível, uma das questões mais debatidas pelos fãs da série é o final, ou melhor, os finais. Além da série original, Anno criou um filme “The End of Evangelion”, com um novo final, e um reboot da série original, cujo final irá estrear algures entre este ano e o próximo. Estamos então perante três finais possivelmente diferentes, com diferentes interpretações e que alteram a forma como vemos algumas personagens. Esta questão não tem sido fácil de digerir. Para alguns o final é algo bastante pessoal, misterioso e espiritual, para outros é apenas uma pobre conclusão de uma série incrível.
Regressando à questão anterior, o que torna “Evangelion” um sucesso mundial e o que o torna diferente de tudo o resto? Bem, antes de mais o anime centra-se numa personagem que sofre com dois problemas, uma depressão, fruto de ter perdido a mãe e de ter um pai que o trata como um objecto, e uma grande dúvida existencial sobre a sua sexualidade, sobre a sua confiança e sobre si próprio. “Evangelion” fala de como é que nos vemos a nós próprios e como é que nos definimos. Essas questões são exploradas não só através de Shinji, o protagonista, mas também através de todas as outras personagens, chegando ao ponto da exaustão extrema que o tema do suicídio chega a ser colocado como hipótese. Não há barreiras em “Evangelion”, tudo é extremamente real e extremamente duro do ponto de vista das emoções e sentimentos. Crescer no universo de “Evangelion” é crescer no purgatório com o inferno sempre a espreitar. Raramente existem momentos realmente felizes e talvez por isso Anno esteja a criar tantos finais, de alguma forma querer também ele próprio encontrar o seu paraíso, para si e para as suas personagens.
Outro factor diferenciador para a altura foi o facto de que só mulheres é que salvam Shinji de todos os momentos complicados. Rei, Asuka, Misato, Ritsuko, Maya. Todas elas têm em si um poder único e incrível e são um forte “statement” sobre o que é ser mulher, sobre como as mulheres devem ter mais impacto na sociedade e nas decisões importantes de um país. Isto é, sem dúvida, um grande murro no estômago a um país que se tem dedicado nos últimos milénios a inferiorizar a mulher. Se para nós, ocidentais, isto pode não ter assim tanto impacto, para a cultura japonesa é sem dúvida algo bastante forte. Não é apenas o facto das mulheres assumiram papéis de relevância, isso já aconteceu obviamente em animes ou filmes anteriores, mas é mais pelo facto de se assumirem como líderes, como alguém que detém em si o poder de decisão. Depois há também a questão da sexualidade e a forma como isso é explorado em “Evangelion”.
Todas as questões religiosas, sexuais, sentimentais e emocionais são tão profundamente exploradas que é impossível não sentirmos o desespero de Asuka no momento em que, enquanto pilota o seu Eva02, é totalmente mutilada; a agonia de Shinji enquanto tenta fugir às suas responsabilidades, ao confronto com o seu pai, com Rei, com a sua sexualidade. Do ponto de vista de complexidade é claro que estamos perante talvez o mais profundo anime alguma vez criado.
Em “Neon Genesis Evangelion” não há heróis, somos todos vitimas de algo, seja de “Anjos” que querem destruir a humanidade, de um maníaco que vive obcecado com o Terceiro Impacto, ou do amor. “Evangelion” vira-se para quem viveu toda a sua juventude/vida alienado de tudo e todos e diz-lhes “Eu percebo o que sentes.” Não mostra soluções nem caminhos, mas pelo menos tenta mostrar-se presente e mostrar como todos as personagens lidam com a rejeição e as dúvidas do que é crescer.
Recomendo a leitura do artigo da Polygon, onde debatem não só estas questões mas também a relação da série com a luta pela depressão vivida pelo seu criador, Hideaki Anno.