O recital de jazz de Matthew Halsall e companhia na Casa da Música
Matthew Halsall é um nome de enorme força e peso no panorama do jazz britânico. Para lá de trompetista, o músico de Manchester desenvolveu um percurso bastante rico e colaborativo no espaço onde fertiliza o jazz espiritual, convidando outros nomes para embarcarem consigo na Gondwana Records, a sua editora, criada em 2008. A saber, grupos como os Portico Quartet, GoGoPenguin ou Mammal Hands têm a pegada de Halsall, comungando valores e perspectivas daquilo que o jazz pode e consegue alcançar. No seio da sua editora, organizou uma “Orchestra” com o mesmo nome, procurando, através do jazz, (re)unir os continentes e as suas musicalidades, desde África à Ásia. Para isso, contou com o poder de iniciativa e de imaginação de nomes como a harpista Rachel Gladwin ou o saxofonista Nat Birchall, incorporando o instinto intercontinental de nomes como Alice Coltrane ou Pharoah Sanders.
Nove álbuns depois (entre os quais destacamos “Colour Yes” (2009), “When The World Was One” (2014) e “Salute to the Sun” (2020), este com uma versão ao vivo lançada no ano seguinte), e Halsall chegou ao mítico recinto do Royal Albert Hall, em Londres. Por cá, após uma passagem debutante por Espinho em 2021, chega ao Misty Fest neste mês de novembro, com passagem por Lisboa, ao lado do génio da produção musical Makaya McCraven (que tivemos a ocasião de entrevistar), e pelo Porto. Assim, demos um salto à Casa da Música, ao abrigo do Misty Fest, e fomos ter com alguém cuja musicalidade não nos é estranha. Isto porque, em julho passado, vimos no Matosinhos em Jazz a harpista Amanda Whiting — com quem conversamos — e o trompetista Chip Wickham, dois dos colaboradores mais frequentes de Halsall na Gondwana, naquele que foi, talvez, o concerto mais apurado e certeiro desse evento.
Quatro meses volvidos, Halsall apresentou-se com o seu mais recente trabalho “An Ever Changing View”, que contou com a presença de Matt Clife na flauta e no saxofone, Alice Roberts na harpa, Liviu Gheorghe nas teclas, Gavin Barras no contrabaixo, Alan Taylor na bateria e Jack McCarthy nas congas. É um disco que se distingue dos seus antecessores por mergulhar em texturas mais experimentais e quase etéreas, colocando os normais trâmites do jazz como somente figurantes e nunca protagonistas. O inglês faz do binómio presença/ausência do seu trompete um recurso indispensável para a vocação metafísica do álbum, debruçada sobre a Natureza e sobre a ligeireza dos seus companheiros intérpretes e respetivos instrumentos. Sem prescindir do trompete, traz a percussão da africana kalimba e do clássico glockenspiel como acessórios ao tal vínculo que estabelece com a Natureza.
Embora em sala fechada e em tudo urbanizada, Halsall fez compensar a ausência de Gheorghe por Jasper Green e Jack McCarthy por Sam Bell. Esperávamos ver Chip Wickham a fazer companhia ao trompetista, mas ficamos com a memória de Matosinhos lá bem latente. A Sala 2 foi o palco que os recebeu, dado a Suggia estar ocupada com o grupo Lambchop e o membro dos Low Alan Sparhawk, com a particularidade de não ter lugares sentados para todos. Algo que, à partida, consideramos errado, dado o jazz espiritual quase que exigir a contemplação relaxada e tranquila, devidamente acomodados no assento. Porém, fomos contrastados com um recital de jazz que, de espiritual, só teve os aspetos percussivos. Desde congas a triângulos de vidro, todo o concerto foi assente no virtuosismo dos executantes de instrumentos tão diversos. Todos tiveram a oportunidade de brilhar, dado que Halsall, se fôssemos a contabilizar com rigor, só atuou em um terço ou um quarto do tempo útil, mesmo que, quando o fazia, fazia com gosto, com responsabilidade e com a inata qualidade dos grandes.
Enquanto meneava o seu permanente boné a ver os seus colegas executar as faixas de “An Ever Changing View”, acabava por ir colorindo a pintura que se desenhava com o seu trompete, recorrendo a uma mesa com vários recursos sonoros para intensificar algumas sensações da Natureza. Eram aspetos que procuravam manter a toada espiritual viva, embora se tornasse tímida. Aquilo que encheu a Sala 2 da Casa da Música foram os aspetos que fazem do jazz ser um género musical tão brilhante e arrebatador: as camadas sonoras dos vários instrumentos, tão distintos entre si em modos e resultados, que se vão acasalando umas com as outras e dando resultados finais de tremenda satisfação. Jasper Green foi um dos protagonistas, dando cartas no seu teclado; à imagem do baterista Allan Taylor e de Matt Clife, que soprou mais música que o próprio Halsall, que se ia divertindo a ver os colegas atuar e ia pautando mudanças de ritmo com os dedos.
O concerto foi dividido em duas partes, cada uma com 45 minutos de duração e com um intervalo de 20, à imagem dos concertos de jazz convencionais. Foi uma espécie de transição suave entre o trabalho mais recente de Halsall, que, na primeira parte, só trouxe “Patterns” de diferente, à qual juntou faixas como “Tracing Nature”, “Water Street” ou “Triangles in the Sky”, e a sua atividade discográfica anterior. “Salute to the Sun” fez-se ouvir, naquela que foi a experiência mais espiritual de todo o concerto, tendo também chegado aos ouvidos temas recônditos, como “The Eleventh Hour” ou “Sagona Bamboo Forest”, composta no Japão. “Finding My Hour” faria o encore daquele que foi o 30º concerto de Halsall e companhia nesta digressão. O músico, que havia passado férias no Porto e que conhecia a cidade por isso mesmo, elogiou o público, que lhe retribuiu o carinho com duas ovações de pé e com muitos aplausos para os momentos a solo dos membros da banda.
Foi um momento intimista aquele vivido na Sala 2 da Casa da Música, numa noite de outono que mais parecia de inverno, protagonizado por Matthew Halsall e companhia. Foi o calor humano que foi aconchegando a alma, ao qual se fez juntar um recital de jazz bem dado pelos instrumentos de cordas, percussão e sopro e seus intérpretes. Um diálogo fluído e natural, totalmente sincronizado com as aspirações de uma realização musical ao vivo. Se a isso podemos chamar jazz espiritual? Quiçá, na medida em que absorve e faz submergir a sua audiência. Porém, no sentido da elevação e da transcendência, talvez nem tanto, dado que só em transe é que daríamos por nós a vibrar e quase a dançar com a sua música. Em jeito de resumo, a vontade de o rever por cá pareceu grande e quiçá Matosinhos (em Jazz) ou outro lugar disposto a acolher Matthew Halsall — ele que afirmou que gostava de viver por cá — cumpra esse desígnio de regresso. Até lá, guardamos a experiência de uma lição de jazz ao vivo por parte de quem sabe.