O Ricardo Araújo Pereira das sextas-feiras não pouparia o Ricardo Araújo Pereira dos domingos
O Ricardo Araújo Pereira tem vindo a dizer, em várias conferências sobre o tema, que o humor serve única e exclusivamente para fazer rir e não tem qualquer tipo de impacto político. Dá como único exemplo o facto de Trump ter sido o político mais visado pelos humoristas nas últimas eleições norte-americanas e isso não o ter impedido de vencer (como se as variáveis fossem só essas). Parece-me óbvio que o humor ajuda a moldar percepções sobre determinadas pessoas e discussões públicas, até com mais eficácia que o jornalismo, por vezes. Haveria inúmeros exemplos em contrário que podiam refutar a tese do RAP nessas conferências, mas entretanto ele termina o raciocínio com uma piada, há gargalhadas, depois palmas, o assunto dá uma curva e entretanto ninguém quer saber do contraditório, quando o há.
Tenho sérias dúvidas de que Ricardo Araújo Pereira acredite ingenuamente nessa ‘inutilidade política’ do humor, ele que é opinion-maker há mais de 10 anos e tem, precisamente, sabido usar o humor para olear o seu posicionamento, tornando os argumentos mais incisivos, eficazes e, quando é o caso, ferozes. O élan de intelectual que granjeia, e muita da merecida admiração, devem-se à sabedoria e convicções ideológicas, mas a agilidade retórica (quem não aprecia uma boa punchline?) deram um grande empurrão.
Por também o admirar, custa-me ver um Ricardo Araújo Pereira que à sexta-feira (Governo Sombra, por exemplo) assume posições estruturadas e mostra inteligência para reconhecer todas as manhas dos atores nacionais, mas ao domingo (Isto é Gozar com Quem Trabalha) finge acreditar que as suas escolhas são neutras como baunilha e só provocam gargalhada gratuita.
Quando convida políticos (que têm o guião já estudado) para o programa, não está a santificar o fim último de rir do humor. Pelo contrário: o riso perde-se porque tudo naquelas conversas é mais forçado que espontâneo; as perguntas que dirige parecem provocatórias e aparentemente evidenciam contradições do convidado, mas esfumam-se por não terem continuidade; e acaba, mais do que humorista, por ser o isco para operações de charme e simulações de simpático poder de encaixe.
Se se sente bem nesse papel? Nada contra, mas deixa muito a desejar em relação ao respeito intelectual que merecidamente ganhou ao longo dos anos. A explicação que dá para as amigáveis conversas com pessoas de lados políticos opostos é compreensível: não convida as pessoas para as humilhar. Mas daí até estender a passadeira vermelha do horário nobre, por exemplo, ao líder de um partido que RAP nunca quereria que ganhasse votos, vai uma grande distância.
O valor que o RAP aufere por aquele programa não é da nossa conta e, por mais alto que seja, não será desproporcional à sua dimensão popular. Mas fico a pensar que um momento de maior conforto financeiro devia abrir portas para formatos mais ousados e com chancela própria – em vez de favorzinhos mediáticos de ocasião sob a capa de contador de anedotas despolitizado que há muito quis deixar de ser.
Não são só os convidados. Ontem, 19 de abril, fez uma rábula na SIC onde reunia as supostas contradições da Diretora-Geral de Saúde e da Ministra da Saúde sobre a evolução da Covid-19 ao longo do tempo. O Ricardo Araújo ‘sério’ Pereira sabe que o vírus tem comportamentos dinâmicos que requerem narrativas e medidas adequadas a cada momento; o Ricardo Araújo ‘domingos‘ Pereira, que parece ignorar tudo isso em prol de uma chalaça, fez ontem um favor a todos os que vivem de teorias da conspiração e montagens populistas em grupos manhosos do Facebook.
O Ricardo Araújo Pereira das sextas-feiras não pouparia de enxovalhos o Ricardo Araújo Pereira dos domingos.
Texto de Pedro Rebelo Pereira, originalmente publicado em Espalha Factos.