O Salgado Faz Anos…Fest fez dez anos, e esperamos que faça muitos mais
O Salgado Faz Anos…Fest é, para portuenses e não só — também para melómanos, também para os frequentadores da noite do Porto, também para os amigos do Salgado, e para todas as intersecções possíveis destas várias categorias — uma noite especial, que decorre, como habitual, num espaço que é indissociável da sua figura: o Maus Hábitos, na rua Passos Manuel. Seria difícil considerar um sem o outro: o mítico lugar encontrado num quarto andar, muito no centro do Porto, onde ora se chega pela forma mais fácil via elevador, ora se conquista passada a passada, na aparentemente infinita escadaria em espiral que partilha também com o parque de estacionamento adjacente. Nesta noite, houve a visão pouco habitual de ver a fila a formar-se no exterior, quando em qualquer outro dia se vai distribuíndo, de forma não inteiramente ordeira, escadas acima (e esta é a primeira, ainda que leviana, indicação de transgressão da ordem normal das coisas). No dia, a entrada valeu 20€, cinco acima do estabelecido em pré-venda: ainda assim, e sobretudo nesta economia!, dado de bom grado pela permuta com, se não mais (e é sempre mais), cerca de uma vintena de concertos e performances, na que constitui uma das festas de aniversário mais fixes que há por aí.
Nessa noite de Sábado, porventura das mais gélidas noites que o ano nos ofereceu, a festa aqueceu ainda antes da chegada ao espaço, entre o mítico Bingo da Trindade, o local do jantar, ruas e praças, micro-e-macro paragens pela baixa portuense: davam-se encontros de muitas caras conhecidas com gente de mais a norte, e gente de mais a sul, gente dali mesmo e de fora que tem nesta festa um ponto de encontro especial. À mesa que me acolheu, somavam-se suficientes presenças em aniversários para perfazer a idade do Salgado ele próprio — ou mais do dobro, ou talvez nem sequer metade — e histórias, várias e recuperadas até ao ponto em que a veracidade dos factos tem já dois ou mais pontos de vista, confundindo anos diferentes, e até festas distintas. Há tanto que já ali se passou e que, à falta de registos imparciais, se partilha pela via desta tradição oral- “e aquela vez em que fulano fez isto, e aconteceu aquilo depois?”; claro está, o fulano é frequentemente o Salgado, e o acontecido fica sempre mais com quem lá esteve: mas o lugar é, invariavelmente, o Maus Hábitos.
O espaço, que em tempos terá sido um apartamento de várias assoalhadas, consegue albergar três palcos: a saber, Super Bock, na sala mais ampla que serve habitualmente de café/restaurante; O Salgado, no já habitual espaço de concertos; Stockhausen, num recanto mais intimista e o único a dar-se dentro de portas); mas todos os corredores, e pequenos atalhos de um lugar a outro, manifestam-se também lugares de interesse próprio, poiis que parece haver por toda a parte um espírito especial e electrizante de celebração, de alegria, de verdadeira festa; é possível, também, que nunca tenhamos visto aquele quarto andar tão preenchido, cheio de gente e de entusiasmo, como uma verdadeira festa de aniversário deve ser, mas uma festa diferente, onde se pode presenciar concertos para mais tarde ver os mesmos artistas a beber copos, nos mesmos corredores, e noutros concertos também.
O Salgado Faz Anos…Fest, que já vai na sua décima edição, sintetiza uma forma de estar na arte e na cultura de um lugar muito especial na vida do Porto. Já se entreviu, nas palavras do próprio Salgado há uns meses, uma espécie de declaração de intenções para o Maus Hábitos que se alinha no plano mais geral das rápidas metaformoses a que assistimos na cidade e na sociedade. Há quem aponte a eventual gentrificação do espaço, concomitante com a progressiva transformação da sua oferta — que já tem almoços e jantares, que serve cocktails a punks, que recebe jazz e stand-up comedy à mesa, que tanto alberga a Beyoncéfest como instalações experimentais — mas essa pluralidade é, mais do que uma característica intencional de ecletismo, um reflexo dos tempos, que mudaram e continuarão a mudar. É interessante poder albergar, naquele espaço tão reduzido e oferecendo a tantas pessoas, os drones contemplativos do Sarnadas, back-to-back com a actuação surpresa (mas ele vem todos os anos!) de Samuel Úria, back-to-back-to-back com experimentações percutivas e rítmicas de Ricardo Martins – e que isto seja apenas uma ínfima parte do todo que ali se deu…parabéns ao Salgado! Que a festa se continue a fazer, por muitos e bons anos.