O Vale Perdido convidou-nos a desacelerar com Jessica Pratt e Leonor Arnaut

por Bernardo Crastes,    16 Novembro, 2024
O Vale Perdido convidou-nos a desacelerar com Jessica Pratt e Leonor Arnaut
Jessica Pratt. Fotografia de Vera Marmelo
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O festival Vale Perdido tomou de novo diferentes moradas em Lisboa para a sua segunda edição. A sua mostra eclética de música reflete aquela que é a paisagem musical em constante mudança da capital. Ecoando o sentimento de Leonor Arnaut, artista que abriu o concerto de Jessica Pratt no clube B.Leza no âmbito do festival, é bom ter espaços criativos e programadores que não têm receio de arriscar e tentar fazer diferente, como é o caso de Sérgio Hydalgo, Joaquim Quadros e Gustavo Blanco, os curadores do Vale Perdido.

Por exemplo, convidar uma artista que ainda não tem trabalhos a solo editados para fazer “o que quiser”, não só demonstra uma enorme confiança na artista, como também uma temeridade incomum no cenário cultural português. Certo é que Leonor Arnaut esteve mais que à altura do desafio. Acompanhada de uma banda composta por Margarida Campelo, João Pereira e Filipe Louro, apresentou um punhado de canções compostas ao longo dos últimos meses e, como tal, inteiramente novas.

Sem expectativas, fomos tomados de surpresa pelo início cheio de textura do concerto, com o baixo e tambores a emular uma trovoada distante. Um piano impassível e a voz etérea de Leonor pareciam ignorar essa trovoada, fazendo-nos temer pela sua segurança. As restantes canções seguiram essa toada, pegando em melodias bonitas e complicando-as para criar algo misterioso, que poderia perfeitamente ser tocado no Roadhouse de “Twin Peaks”. A certa altura, uma canção parecia formar-se do fumo que saía das máquinas de palco, com a banda a montar pacientemente camadas sónicas que eventualmente desabrochavam em algo que estamos curiosos para ouvir em versão de estúdio.

Leonor Arnaut. Fotografia de Vera Marmelo

Mas talvez a parte mais importante das canções tenha sido precisamente a voz de Leonor, que nos remeteu ao cancioneiro português das décadas de 80 e 90. Particularmente, lembrou-nos de Xana e Viviane, as vocalistas dos Rádio Macau e Entre Aspas, respetivamente. A sua doçura era submetida a efeitos vocais sem medo, saindo sempre intacta do outro lado da canção. O curto concerto foi um excelente acepipe não só para criar apetite para mais música da autoria de Leonor Arnaut, mas também para aquilo que se seguiria no alinhamento da noite.

O concerto de Jessica Pratt era talvez o mais aguardado desta segunda edição do Vale Perdido, particularmente considerando que se encontrava esgotado há semanas. À hora marcada, a artista norte-americana subiu ao palco com a sua banda de 4 elementos — um notório aumento quando comparada com o único teclista que a acompanhou na sua última vinda a Portugal, em 2019. Isso deve-se às canções de Here in the Pitch, disco que lançou este ano, serem mais ricas que aquilo que a sua folk pacífica demonstrara até então, sendo adornadas com bateria, saxofone e teclas.

De resto, a experiência não mudou muito. A voz de Jessica continua a soar como se saísse de um disco encontrado num sótão empoeirado, intemporal e intocado. Os seus tensos trejeitos de boca continuam a adaptar a sua peculiar dicção ao espaço livre deixado pela instrumentação esparsa, que ainda assim parece ser pouco. É que a música de Jessica Pratt parece quase sempre tentar ocupar o menor espaço possível, retirando camadas de algo completamente formado para o cingir à sua essência. Ocasionalmente, essa abordagem lembra-nos do dub, género que se aproxima de pequenos detalhes para os destacar como num close-up de cinema, para logo a seguir voltar ao grande plano, perfeitamente composto e desafogado.

Em Here in the Pitch, este minimalismo ocasionalmente expande a sua forma compacta para acrescentar novos detalhes. Ao vivo, a banda permitiu a Jessica explorá-los, como os toques de percussão em “Get Your Head Out” e o piano ligeiramente fora de tom que deu uma nova dimensão à noturna bossa nova de “By Hook or by Crook”. O arranjo desta última canção converteu-a em algo mais lounge, mas com um toque fora do comum. Era um pouco como olhar para um espelho meio torto. As teclas prosseguiram com “Opening Night”, a fantasmagórica abertura de Quiet Signs, o seu álbum anterior. Logo a seguir, sem pausas, as mesmas notas repetem-se na guitarra de Jessica para “As the World Turns”. A sua voz com eco complicou ainda mais a reflexão no espelho que visualizámos em cima, como se fosse o reflexo de um reflexo.

Jessica Pratt. Fotografia de Vera Marmelo

A presença espectral da sua voz convidava-nos a acompanhá-la nas suas letras, mas ao mesmo tempo cantar parecia quase um desrespeito para com a delicadeza da sua entrega. Por isso, ocasionalmente ouvíamos murmúrios do público e víamos bocas cantando em surdina, como se de rezas se tratassem. Esses foram os poucos momentos em que se a sala mais que esgotada se fazia notar, sendo que de resto foi absolutamente respeitadora com a desaceleração de ritmo que um concerto assim impõe a quem está a assistir. O estado de torpor que se ia gerando era apenas entrecortado por um foco maroto que teimosamente iluminava o público com uma intensidade desnecessária, acordando-nos momentaneamente antes de voltarmos ao idílio da folk de Jessica.

Mais para o final, canções mais cheias como “Back, Baby” ou “Life Is” já convidavam a um maior desprendimento e, pelo menos no caso da primeira, até a um pezinho de dança ligeira. Depois de ter cancelado 5 concertos devido a doença, Jessica expressou estar feliz por estar de volta ao palco, na maior das tímidas interações que teve com o público. Público esse que, embevecido, aplaudia cada canção para lhe garantir que nos sentíamos absolutamente gratos por ter partilhado, ainda que brevemente, a sua visão musical única. Para o encore, guardou “On Your Own Love Again” e “Fare Thee Well”, abandonando então derradeiramente o palco para nos devolver de novo à cidade buliçosa e imperdoável.

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