Odete Isabel: “Ser mulher naquela altura era visto como uma desvantagem”
É destemida por natureza. Enfrentou o poder autárquico. E nem o machismo a fez recuar. Na farmácia, na política e nas relações pessoais, o medo nunca fez parte do seu vocabulário.
O desafiar do poder autárquico
25 de abril de 1974. Um dia glorioso para os defensores da liberdade. Foi derrotada a ditadura em Portugal. Por todo o país viveu-se a Revolução dos Cravos. No Centro Hospitalar de Coimbra também. Odete Isabel estava a trabalhar quando se ouviram as primeiras senhas. Este marco na história de Portugal fomentou em si um desejo em querer participar ativamente na sociedade. “Eu sentia que era capaz de fazer tudo. Queria saber até onde conseguia ir com o meu poder.” E assim foi. Anos mais tarde, concorreu à presidência da Câmara Municipal da Mealhada. No início, não teve o apoio que desejava, mas isso não foi impedimento de prosseguir com a candidatura. “O presidente de administração do hospital era da opinião de que as autarquias eram para os homens, mas lá acabou por aceitar a minha decisão”. Colocou corpo e alma na campanha eleitoral. Visitou a Mealhada de norte a sul. Passou pelas grandes e pequenas localidades. Falou com as pessoas. Com os pobres e ricos. Sem exceção. O resultado foi vitorioso. A 12 de dezembro de 1976, Odete Isabel tornou-se na primeira mulher presidente de câmara em Portugal. A seguir a si, nas mesmas eleições, foram eleitas mais quatro mulheres para a governação das autarquias. Juntas, desafiaram o poder local e ficaram conhecidas como “As Cinco Magníficas”. Podiam não ter os mesmos ideais políticos, mas tinham um objetivo em comum: a destruição do patriarcado, em prol do feminismo. Este objetivo tornou-se numa luta pela afirmação da mulher nos cargos de poder, que estavam, no passado, apenas confinados aos homens.
Na primeira reunião de câmara, Odete Isabel era a única mulher em sete homens. Recorda-se que nem todos aceitaram a sua posição de liderança. “Tive de os mandar calar. Eu queria o bem-estar das populações. Eles também. Portanto, ordenei que juntássemos as nossas vontades. Afinal de contas, quem mandava era eu.” Era todos os dias vítima de machismo. De comentários desagradáveis. De desigualdade de género. Mas desistir nunca foi uma opção. “Passei muitas vezes por prostituta. Ainda para mais com a minha maneira de ser. Metia-me com toda a gente. Gosto de comunicar. Quem me dizia isso queria que eu me demitisse.” Antes do seu mandato, Odete Isabel conta que a Mealhada não tinha dinheiro, estava desorganizada e os trabalhos eram precários. Um exemplo que ilustra esta pobreza é os cantoneiros. Todos os dias, quando tinham que ir limpar as estradas usavam as suas próprias ferramentas, pois a Câmara Municipal não tinha possibilidades materiais. Durante os anos em que esteve no poder, procurou satisfazer as necessidades da população em prol do seu bem estar.
Apesar de não ter filhos, mostrou sempre afeto pelos mais novos. Certo dia, numa visita a uma aldeia isolada, precisou de beber água. Como naquela localidade não havia canalizações, deslocou-se até à fonte mais próxima. Lá ao fundo, começou a ouvir crianças a chorar. Era a altura das vindimas. Enquanto as mães podavam as parreiras, elas ficavam num largo a brincar. “Mas o que é que vai ser destas crianças quando crescerem?”, questionou Odete Isabel. Rapidamente percebeu que tinha que lhes dar uma infância com mais qualidade. A solução passou por criar jardins de infância em todo o concelho. A Mealhada foi pioneira na educação das crianças em Portugal com educação pré-primária em todas as freguesias. “As pessoas apreciam aquilo que eu fiz. Há rapazes e raparigas, que naquela altura eram crianças, que hoje me abordam na rua. É muito bom saber que preparámos o futuro de muitas gerações.” Para agradecer o trabalho que foi desenvolvido, foi inaugurado um jardim de infância em sua homenagem na aldeia onde ouviu o choro das crianças. Um gesto que fica imortalizado na história no concelho e na vida de Odete Isabel.
Contudo, nem tudo correu como esperado. Apesar da prostituição ser legal em Portugal, Odete Isabel é contra. Na Mealhada, os atos de prostituição eram uma constante. Durante o seu mandato, tentou colocar um ponto final, mas sem efeito. Os tribunais nunca lhe deram razão. “Tive um insucesso brutal na prostituição. Revolta-me imenso não ter consigo fazer justiça.” Odete Isabel admite ser ambiciosa. Se pudesse, voltava atrás e terminava aquilo que ficou por fazer.
Uma vida dedicada aos outros
Com o término do mandato, Odete Isabel regressou aos hospitais. Esteve durante três décadas à frente da direção da farmácia dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Recorda terem sido anos duros com muito cansaço e responsabilidade. “O hospital é a empresa mais complexa do mundo. Fazer a utilização racional dos medicamentos para os doentes é desafiante.” Mas o grande desafio da sua carreira foi no norte do país, onde liderou a criação do sistema de farmácia nos centros hospitalares. “Os medicamentos estavam por conta dos chefes de secretaria, médicos e enfermeiras. Durante três anos, consegui que todos os hospitais do norte tivessem farmacêuticos a trabalhar 24/24h. O trabalho que foi feito deixa-me com um orgulho imenso.”
A sua vida profissional tem sido uma constante surpresa. Estava determinada em seguir medicina cirúrgica, mas acabou por ingressar na Faculdade de Farmácia do Porto. Quando terminou a licenciatura, encontrar emprego não foi fácil. Nem a madrinha, que era uma pessoa influente, a conseguiu ajudar. “O problema é que era mulher. E ser mulher naquela altura era visto como uma desvantagem”. Nunca perdeu a esperança. Sabia que ia encontrar emprego. Que um dia ia conseguir ser independente. Hoje, vê que o esforço foi recompensado. Nos anos em que esteve ao serviço, direcionou toda a sua atenção aos pacientes porque, segundo Odete Isabel: “Quem manda é o doente”. Reformou-se aos 62 anos no histórico dia 25 de abril. Saiu da mesma forma como entrou: com irreverência e determinação.
As referências femininas na educação
A cidadania, o respeito, o trabalho e a igualdade. Princípios morais transmitidos a Odete Isabel pelas três figuras femininas da sua vida: a mãe, as freiras e Maria de Lourdes Pintassilgo. Não cresceu no luxo e não tinha grandes recursos económicos. Contudo nunca deixou de estudar, em grande parte devido à mãe. “Ela estimulou sempre em mim a importância do estudo. Quando a minha mãe gostava de uma pessoa só falava em verso, rimava e brincava com as palavras. À medida que foi crescendo deve ter sentido uma falta enorme de poder estudar e de avançar com a sua poesia”.
Aos 12 anos, Odete Isabel foi como interna para um colégio de freiras. Uma decisão imposta pelos pais. “Doeu-me muito estar longe de casa. Eu pensava não gostavam de mim.” Nas freiras encontrou conforto e depositou toda a confiança. “Elas conseguiram orientar-me para o caminho certo. Fizeram com que assumisse responsabilidades.” Apesar do espírito rebelde e de arranjar todos os pretextos e mais alguns para sair do colégio, Odete Isabel foi sempre eleita para ocupar cargos de chefia. Representar a turma era um deles.
Quando frequentou a Juventude Universitária Católica, conviveu de perto com Maria de Lourdes Pintassilgo. Com ela, aprendeu a dar preferência ao “ser” em vez do “ter”. “Eu era barro e precisava de ser moldada. Maria de Lourdes Pintassilgo deixou em mim uma vontade enorme de espalhar sementes de humanidade”. Na Câmara, no hospital, nas relações pessoais. Em todos os momentos da sua vida, foi espalhando essas sementes. Foi partilhando com os que a rodeavam a igualdade de género e a importância do respeito pelo próximo.
Passaram-se 42 anos desde as eleições autárquicas de 1976. Mas nem a passagem do tempo quebrou os laços de amizade entre “As Cinco Magníficas”. Apesar de já só serem quatro, continuam a encontrar-se. A combinarem cafés. E a terem longas conversas sobre política.